A vivência lésbica na Maré

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Por Carolina Vaz

A Maré, com seus 140 mil habitantes e 16 favelas, é muito diversa. Basta pisar em uma das favelas para perceber a diversidade de sons, cheiros, paisagens, comércios e também de pessoas. A diversidade dentro da Maré é explícita, e isso passa inclusive por gênero e sexualidade. Nascem e prosperam na favela grupos LGBTQIA+, sejam ativistas ou culturais, e prova disso é a Parada LGBT da Maré, realizada há mais de 10 anos. Mesmo assim, algumas identidades podem ser invisibilizadas e negligenciadas na favela, como em qualquer outro lugar, o que demanda uma articulação mais específica. Nesta reportagem conversamos com Dayana Gusmão, assistente social e fundadora da Resistência Lésbica da Maré, uma coletiva atuante desde agosto de 2016. 

 A Resistência foi fundada inicialmente como Resistência LesBi de Favelas, pois tinha o objetivo de reunir diversas favelas para além da Maré, mas em 2018 voltou a ser apenas mareense, com o nome atual, mantendo contato com demais lideranças pelo Brejo Ampliado. Até o começo da pandemia, a Resistência realizava atividades presenciais como o Papo de Mina: um evento mensal que reunia as lésbicas e bis da Maré numa roda, sem tema ou local fixo, para troca de experiências. Segundo Dayana, “A roda é o principal espaço de troca, porque se a menina não está bem é ali que ela vai buscar apoio nas outras”. 

Dayana Gusmão recebendo a homenagem Antonieta de Barros em nome da Resistência Lésbica da Maré. Foto: Facebook Resistência Lésbica.
Evento “Papo de Mina” realizado em junho de 2018 no Galpão Bela Maré. Foto: Facebook Resistência Lésbica.
Evento da visibilidade lésbica de 2019, no espaço do CEASM. Foto: Facebook Resistência Lésbica.

As demandas das lésbicas e bis faveladas 

Hoje, a Resistência tem cerca de 12 participantes na organização e 120 mulheres com quem mantém contato. A coletiva trabalha num tripé: garantia de segurança alimentar para as mulheres, via cesta básica para as que necessitam; acompanhamento psicológico; e acesso a benefícios sociais, a exemplo de Bolsa Família e auxílio emergencial. Essa lista de prioridades deixa explícitas as necessidades básicas para as lésbicas e bis da Maré, o que foi tema de conversa com Dayana. Existe uma grande diferença entre as necessidades para as lésbicas e bis “da pista” (fora da favela) e da Maré: “O que é básico pra pista não é básico pra gente da favela. É direito básico, pra pista, o casamento homoafetivo, a adoção, a inseminação artificial? Nenhum desses é um direito básico pra favela. Direito básico, pra lésbica mareense, é o direito à vida. A gente está lutando pra ficar viva. É o direito a não ser exorcizada dentro de casa, não sofrer violência familiar. É o direito a poder circular na rua exercendo uma lesbianidade”.  

O que fica explícito é que para se falar da experiência, das demandas de ser lésbica ou bi é necessário considerar raça e classe. Nisso a Coletiva se apoia em um mapeamento inédito finalizado em 2020, o Mapeamento Sócio-cultural-afetivo das Lésbicas e Mulheres Bissexuais do Complexo da Maré. A pesquisa, feita em campo, foi capaz de coletar dados dessas mulheres e algumas das constatações foram que: a maioria delas é negra; elas vivem com familiares ou companheiras; têm escolaridades diversas; e sofrem violência mais dentro da família do que fora de casa. Porém, as violências sofridas fora de casa acontecem mais em outros lugares do que na Maré, onde se sentem mais seguras. Em virtude desse perfil, durante a pandemia, sem poder manter um contato mais frequente com as meninas e mulheres, inclusive pela instabilidade da internet na favela, a Coletiva tem utilizado a segurança alimentar como modo de acesso. Existe uma arrecadação de alimentos permanente, de nome “Socorro a elas na Covid-19″, e quando o grupo faz a entrega de uma cesta básica na casa de uma das cadastradas aproveita para estabelecer uma conversa curta, saber como aquela mulher está. Além disso, esta via de entrada de alimentos na casa leva a família a reconhecer a ação positiva da Resistência, como expõe Dayana Gusmão: “A nossa cesta chegar para aquela família lesbofóbica também está dizendo: só tem comida nessa casa porque eu sou sapatão e a Resistência mandou comida”. 

Uma das principais ações atualmente é a distribuição de cestas a lésbicas e bis que necessitam. Foto: Facebook Resistência Lésbica.

Também é utilizando o mapeamento como ferramenta que a Resistência busca provocar políticas públicas para as lésbicas e bis dentro da Maré, em espaços como o Centro de Referência de Mulheres da Maré (CRM) e Centros de Referência da Assistência Social (CRAS). “Antes a gente sempre ia conversar, para pensar política pública, e escutava ‘mas como vocês querem que a gente dialogue sobre o atendimento de uma população que a gente nem tem dado?’. Então resolvemos fazer o mapeamento”, afirma Dayana. A partir do documento, o coletivo pôde fazer formações com os funcionários dos equipamentos públicos para que saibam como acolher uma lésbica ou bi que passou por uma situação de violência. 

A lesbianidade mareense 

Para Dayana, a Maré é muito “fértil” em lesbianidade: tem muita lésbica no bairro. Porém, nem todas as mulheres que se relacionam com outras mulheres se afirmam desse modo. Foi a partir do mapeamento, sendo perguntada pela primeira vez se era lésbica ou bi, que uma parte começou a se definir com esses termos. Ao mesmo tempo, saber que existe uma coletiva de pessoas como ela, capazes de acolher, compreender, trocar experiências, pode contribuir para essa afirmação e para uma sociabilidade mais positiva. Em toda a Maré existem espaços seguros e acolhedores, e cada vez mais, a exemplo de bares, trailer e restaurantes gerenciados por lésbicas e bis ou pessoas que se comprometem a evitar situações de violência. Até mesmo eventos próprios, antes da pandemia, já foram realizados, como foi o Chora Mulheres na Roda, uma roda de choro organizada pela Resistência Lésbica em 2019 na Vila do João. Para a fundadora da Resistência, esse evento há alguns anos era inimaginável.  

O “Chora Mulheres na Roda” foi o evento que fechou as atividades da coletiva em 2019. Foto: Instagram da Resistência Lésbica.

Por isso, para ela, o que deve ser mostrado a uma menina ou mulher que começa a se identificar como lésbica ou bi é a possibilidade: “Possibilidade de viver, possibilidade de saber que se for isso, se ela for uma lésbica, uma bi, ela vai ter espaço de sociabilidade, ela não está sozinha”. É como ela gostaria de ter sido tratada, em vez de sofrer exorcismo religioso para deixar de ser quem é. Trata-se também de mostrar a possibilidade de ser feliz, de se divertir, inclusive dentro da própria Maré com todos os eventos LGBT que certamente voltarão após a pandemia. “O meu sonho máximo de realização é que a gente possa exercer livre afeto na favela e em qualquer lugar da cidade, dentro e fora da favela. Eu fico feliz quando circulo pela favela e vejo sapatonas muito jovens andando de mãos dadas, sapatonas muito jovens celebrando festas de casamento. São direitos da pista que estão sendo absorvidos agora, aos poucos, devagar”. 

Campanha em curso 

Visando garantir a segurança alimentar de lésbicas e bis faveladas do Rio de Janeiro, a coletiva iniciou a campanha “Sapas contra a Covid-19”, uma campanha de doação que objetiva distribuir mensalmente 600 cestas básicas a famílias chefiadas por essas mulheres na Maré, Complexo do Alemão, Cidade de Deus, Morro do Pinto, Providência e Cantagalo. Serão 100 cestas por território e tem o valor final de 42 mil reais. Para lançar a campanha foi realizada uma live em 1º de julho. É possível contribuir pelo site Vakinha com qualquer valor, sendo que cada 70 reais garantem uma cesta. Pode ser acessada em: https://bityli.com/ApoieSapasContraACovid19.  

Para acompanhar o trabalho da Resistência Lésbica de Favelas é possível acessar o Instagram ou Facebook

 

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