Educação de resistência: pré-vestibulares comunitários debatem desafios e perspectivas

Eventos, Utilidade pública

Por Carolina Vaz

Faveladas, favelados, moradores da Zona Oeste, universitários e outros militantes da educação reuniram-se no Museu da Maré no dia 19 de agosto para falar de educação, acesso à universidade, dificuldades e perspectivas, no Seminário de Educação Popular dos Pré-vestibulares Comunitários. O evento foi organizado pelo Curso Pré-Vestibular (CPV) do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (Ceasm) e faz parte da comemoração dos 20 anos da instituição.

Na abertura, Claudia Rose, coordenadora do Museu da Maré, lembrou a criação do Ceasm e do pré-vestibular há duas décadas, e apontou os desafios para os cursos nos anos que estão por vir, com a atual situação política: “Ainda há um caminho longo a ser trilhado e nossas conquistas, pela luta da educação popular, são muito significativas. Hoje travamos uma luta mais árdua pela garantia dos direitos conquistados. Este é um momento de nos unirmos e retomarmos as esperanças. Alguém vai colher o que estamos fazendo aqui”.

Pré comunitário: um ambiente de quebra das estruturas

A primeira mesa de debate foi composta por Luan Domingues, do Morro da Providência, Joelson Satiago, da Educafro, e Francisco Overlande, um dos coordenadores do CPV Ceasm. Joelson Santiago contou um pouco da história da Educafro, que existe há 40 anos e, além de oferecer o curso pré-vestibular a negros e brancos de baixa renda, tem parcerias com universidades privadas para garantir bolsa de 100% aos ex-alunos da Educafro aprovados nos vestibulares. Para Joelson, a educação é um direito de todos e um dever do Estado, mas infelizmente os jovens da rede pública ficam em desvantagem com a qualidade do ensino. O curso é uma tentativa de reparar isso, além de ter um viés crítico. “O pré-vestibular comunitário dá um choque de realidade”, ele afirmou. Para Francisco Overlande, a questão do senso crítico também é fundamental. Na sua visão, o pré-vestibular não deve ser “conteudista” focado nas questões dos vestibulares, mas um ambiente de rompimento de dinâmicas e estruturas. Não à toa, a maioria dos educadores hoje são ex-alunos do CPV, que para além da vida pessoal, emprego e outras questões, dedicam-se à “construção de um mundo novo”. Francisco lembrou da crise da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), hoje sem recursos para funcionar, que é o foco do CPV em virtude das cotas para negras/negros e estudantes de baixa renda. Além das cotas, a universidade conta com bolsas – valores mensais pagos aos alunos, seja para pesquisa, estágio ou permanência – que são uma renda fundamental para muitos mas também tem seus dias contados. Com uma experiência mais recente, Luan Domingues contou do Pré-Vestibular Machado de Assis, que criou no Morro da Providência, entre 2007 e 2008. Hoje estudante da UERJ, ele falou sobre como a possibilidade de continuar os estudos após a escola abriu seus horizontes, uma vez que seus amigos mais próximos na infância faleceram ou foram presos. “O que move os estudantes lá é a garra, ter que lidar com a concorrência”, afirmou.

Cursos se apresentam

Em um segundo momento do Seminário, uma chamada aos representantes de pré-vestibulares presentes levou à apresentação de cerca de 20 pessoas. Foi possível conhecer um pouco dos seguintes espaços de pré-vestibular:

– Ocupação Bosque das Caboclas, em Campo Grande

Educafro, em Comendador Soares, Nova Iguaçu

Pré-vestibular Social Ação, no campus Fundão da UFRJ

Pré-vestibular Popular Cerro Corá

Pré-vestibular comunitário Carolina Maria de Jesus, em Vila Kosmos

– Pré-vestibular Comunitário da Babilônia, Chapéu Mangueira

Pré-vestibular no Morro do São Carlos

Instituto de Formação Humana e Educação Popular (IFHEP), em Campo Grande

– Pré-vestibular Solidariedade, em Vila Isabel

Pré-vestibular Comunitário da Rocinha

– Pré-vestibular comunitário em Rio das Pedras

Pré-Universitário Popular da Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói

Instituto Bem, em Realengo

– Pré-vestibular para Negros e Carentes (PVNC), núcleo Santa Cruz da Serra

– Pré-vestibular Social Atitude

Pré-vestibular Comunitário CEAT, em Santa Teresa

– Pré-vestibular comunitário no Parque União, Maré

Nas apresentações, ficou explícito que para se iniciar um pré-vestibular comunitário não é necessário dinheiro e nem espaço próprio. Vários deles funcionam em igrejas, escolas, universidades e até quadras esportivas. O que move a criação de um espaço de educação do tipo, na verdade, é a vontade. Vontade de dar perspectiva aos seus semelhantes, aos não privilegiados com ensino de qualidade, e até mesmo desprovidos do sonho do ensino superior. Seja com quatro ou 80 alunos, um pré-vestibular comunitário é um espaço de perspectiva, de mostrar que a educação superior é para todas e todos.

Tiago Henrique, do Pré-vestibular no Morro do São Carlos, criado no final do ano passado, afirmou que teve como estímulo a sua própria história, de falta de acesso à educação de qualidade. Anderson Ribeiro, jovem que, apesar dos compromissos com trabalho e família, criou o Pré-vestibular Comunitário da Babilônia, Chapéu Mangueira, afirmou ser frequentemente chamado de “idealista”, mas concordou: “Eu sou idealista, porque eu tenho um mundo ideal, que eu luto para que se torne ideal”. E ainda discordou da ideia geral de que a educação muda o mundo: “A educação libertadora crítica muda o mundo”.

Para Jaqueline, representante do Pré-vestibular Comunitário Carolina Maria de Jesus, em Vila Kosmos, uma das missões dos prés comunitários é fazer com que as pessoas que entram nas universidades sintam-se pertencentes àquele espaços, apesar da desigualdade social que pode ser explícita. Até mesmo no curso da Vila Kosmos, uma das maiores dificuldades é manter os estudantes até o final. Um dos recursos é fazer atividades para além das aulas, como saraus e roda de conversa.

Roberta Campos contou a história do IFHEP, de Campo Grande, que além do pré-vestibular também fundou o pré-Ensino Médio, com o objetivo de contemplar os estudantes prestes a iniciar esta fase escolar. No IFHEP também se vai além dos conteúdos formais de sala de aula: sarais e cineclube também educam. O objetivo de longo prazo, para ela, é que os pré-vestibulares comunitários não sejam mais necessários na sociedade. “A gente luta para deixar de existir”. Essa também é a motivação de Vinicius Silva, do pré-vestibular comunitário do Parque União: “Um dia a nossa luta vai ter feito todo o sentido, tudo isso vai ter valido a pena”.

Educação empoderadora para travestis e transexuais

O debate no Seminário também contou com a presença de Indiana Siqueira, do PreparaNem, pré-vestibular voltado para pessoas transgênero e travestis. Segundo ela, é um grupo que muitas vezes perde o acesso à educação por motivos como preconceito e por serem expulsas da escola e de casa. Elas também têm barreiras para conseguir emprego, tornando a qualificação ainda mais importante. Segundo Indianara, o PreparaNem é um espaço de estudo livre de opressão, e mais do que um curso torna-se uma “família”, com convívio para além da sala de aula. Para além do conteúdo dos cursos, o senso crítico também está sempre em pauta: temas como racismo e capacitismo não ficam de fora. “O Prepara Nem fortalece as pessoas em um movimento constante”, Indianara afirmou.

As barreiras das minorias no ambiente universitário

Indianara Siqueira compôs a segunda mesa de debate do evento, junto a Érika Lemos e Eduarda Oliveira, da Ocupação Bosque das Caboclas; Buba Aguiar e Jessica Raul do Fala Acari; e Humberto Salustriano do CPV Ceasm. Buba Aguiar e Jessica Raul falaram das dificuldades de se dedicar e manter os estudos. Para Buba Aguiar, a universidade não compreende as barreiras de quem vem de uma camada mais pobre. Com a burocracia da universidade, ela não conseguiu bolsa permanência, e precisou trabalhar, o que dificultou os estudos, somando ainda a militância no Fala Acari. Para ela, a universidade, mesmo pública, ainda não entende esse tipo de realidade. Segundo Jessica Raul, ainda é preciso conviver com o risco da presença policial na favela, com os frequentes assassinatos. Na universidade, a exigência é correr atrás de mérito: atingir as notas, produzir pesquisa para conquistar mestrado, doutorado, etc. Para ela, que tenta entrar no doutorado, é difícil ter condições de se dedicar apenas ao estudo. “A nossa tarefa enquanto educadores populares é garantir que o jovem entenda que para nós é muito mais trabalho, mas não podemos desistir”, concluiu.

Humberto Salustriano comentou o difícil momento que a educação no país vive, com corte de recursos na educação superior, principalmente nas iniciativas que garantem a inserção e permanência dos menos privilegiados. Segundo ele, a entrada da população negra e pobre nas universidades ainda é recente, mas os pré-vestibulares comunitários tiveram a sua parte nisso. “Nós estamos vivenciando coisas que a gente já imaginava superadas na conjuntura política brasileira”.

Por fim, os membros dos pré-vestibulares presentes concordaram que o momento é de união: que os cursos, sejam de 20 anos atrás ou fundados em 2017, precisam se comunicar, trocar experiências e lutar juntos para ampliar o acesso de pobres, negras, negros, LGBTs às universidades.

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