Favela Kelson’s

Geral

Uma favela de pescadores

Por Luana de Moraes, com colaboração de Douglas Peres e Amanda Ruas

A favela Kelson’s também é conhecida como comunidade Marcílio Dias. Mas por que ela é chamada por esses dois nomes? Segundo Anderson Duda, de 28 anos, ex-morador da comunidade, Marcílio foi um marinheiro da Armada Imperial brasileira. Usar o seu nome foi uma homenagem. Nilson Santos, morador da favela, afirma que por conta da fábrica Kelson’s estar localizada na entrada, esse nome sempre serviu como referência para dizer onde se mora. De tanto usarem “kelson’s”, acabou pegando. Mas a verdade é que isso não diz muito sobre o lugar. Independente do nome, os protagonistas dessa história são os pescadores e outros trabalhadores, que ocuparam aquele terreno que hoje é a comunidade. E são as histórias deles que iremos falar aqui, a partir do resgate das suas memórias.

Das lembranças de antigamente

A comunidade começou a ser construída em 1948, com a chegada de oito famílias de pescadores, que ocuparam o espaço e ergueram palafitas. Aos poucos, ali onde era a antiga Praia da Moreninha, entre os terrenos da casa do marinheiro e da fábrica Kelson’s, foi se transformando em uma favela. Seu José Carlos dos Santos, pescador, chegou lá com 6 anos de idade. Hoje ele tem 62. Ele nos conta que antes tudo era manguezal. “Você passava em cima das pontes de madeira. Depois muitos pescadores começaram a fazer o aterramento com um negócio de casco de marisco e mexilhão”. Enquanto seu José fala, aponta para o chão da sua casa: “Todo mundo que está aqui, está em cima do valão, aqui enchia de água, enchia de peixe. ”

O filho de Seu José, Nilson Santos, recorda bem das memórias do pai. Com sorriso no rosto, comenta: “Cansei de pescar aqui, porque era só água e lama. Quando a maré baixava, dava para ver siri, peixinho correndo na água. De vez em quando caía uma criança dentro d’água. Porque era uma pontezinha de madeira, não tinha muro não. Ai as crianças, brincando, escorregavam e caíam lá embaixo”.

Foto antiga da comunidade. Foto: Agência de Notícias da Favela

Transformações na favela

Com o tempo, a Kelson’s passou pelo processo de urbanização. A maré foi sendo aterrada cada vez mais e as palafitas foram dando lugares as casas de tijolos. As praias começaram a desaparecer e os lixos tóxicos das empresas atingiram a Baía de Guanabara. Segundo Nilson, tudo isso mexeu diretamente no sustento das famílias de pescadores. “Lá no cais, via gente largar o barco e a rede para pescar. Naquela época, não tinha a poluição que a Baía da Guanabara tem hoje. Pegava peixe de qualidade. Os pescadores viviam bem, ganhava um bom dinheiro. Hoje passamos necessidade, muitos tiveram que largar a profissão. Fui há 15 dias pescar e não peguei nada”.

Seu José diz que o grande problema é o chorume, um líquido que vem do lixo e está poluindo a Baía. Os pescadores estão com uma ação contra a empresa da Washington Luís, que segundo eles, está causando essa poluição.

O cais. Foto: Douglas Peres

A Kelson’s de hoje

Seu José nos conta também que aqueles que permaneceram na pesca tiveram que mudar sua rotina.Agora o camarão está dando o sustento da família. Ele está na parte mais funda, onde a água não está poluída, lá em Paquetá e Piedade. Aí eles vão com um barco pequeno para lugares mais longe. Se saía às 17 para o mar, por exemplo, agora sai 13 horas, para chegar no outro dia 5 da manhã. Já se tornou muito cansativo para o pescador”, diz.

A companheira do Seu José e mãe de Nilson, Maria Clementina dos Santos, de 78 anos, chegou na comunidade com 29. De lá para cá, já viveu da fartura dos peixes e criou seus oito filhos. Viu as casas de tijolos substituírem as palafitas. Viu também o mar sumir aos poucos. A única coisa que ela não deixou de ver ao longo desse tempo foi a pobreza, que ainda hoje é a realidade de muitas famílias. “Quando chove, enche os barracos, fica todo mundo trepadinho, uns nas casas dos outros, deixando o dedo secar a lama. Fico para morrer com isso. Fico, porque não é possível, tanta coisa aqui, tanta gente melhor que vem aí, para ver a pobreza dos pobrezinhos. Eu sou rica, moro aqui, mas sou rica. Tem gente ali mais para baixo, que mora dentro d’água, dentro da lama, neguinho não vai lá ver nada”.

Seu José e Dona Clementina. Foto: Amanda Ruas

A Kelson’s faz parte do conjunto de favelas da Maré e é uma das mais afastadas do bairro. De acordo com Anderson Duda, a principal semelhança entre a Kelson’s e as outras favelas é o comércio, os pescadores (cenário que é semelhante a Ramos) e o potencial das pessoas, os empreendedores sociais. “Mesmo com menos recursos e menos incentivos, eles conseguem criar um empreendimento, conseguem sobreviver e sustentar as famílias”. Entretanto, pelo fato de estar ainda mais distante das outras, a Kelson’s é pouco assistida pelas autoridades. Os problemas continuam e Dona Clementina se entristece com isso, mas finaliza a entrevista com um suspiro de esperanças “antes d’eu morrer, vou ver isso aqui melhor, porque Deus é maior. Essa meninada criada numa bondade”.

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