Rota ancestral: atrizes do Teatro das Oprimidas fazem formação em Guiné-Bissau

Cultura, Geral

Por Carolina Vaz

Foto de capa: Rafael Lopes

Duas atrizes, mulheres pretas e periféricas que hoje coordenam o Centro do Teatro do Oprimido (CTO), representaram o Brasil em importante evento no país africano. Maiara Carvalho, da Maré, e Eloanah Gentil, do Complexo do Viradouro, em Niterói, participaram no final de 2022 de encontro do Teatro das Oprimidas, junto a mulheres de outros oito países e de 12 etnias de Guiné-Bissau, na cidade de Bissau, considerada a capital do país. A experiência de mais de 10 dias gerou uma intensa troca entre as 55 mulheres presentes e trouxe uma nova energia aos projetos que as atrizes realizam no estado do Rio.

Mulheres de três continentes

O IV Encontro da Rede Ma-g-dalena Internacional (RMI) de Teatro das Oprimidas aconteceu entre os dias 21 e 30 de novembro de 2022, mas as duas atrizes chegaram mais cedo para se ambientar. Era a primeira vez num país na costa da África, o que foi muito impactante para duas brasileiras pretas, que junto a mais duas atrizes, Rachel Nascimento e Carol Netto, compunham o Coletivo Madalena Anastácia, representando o Brasil. O evento contou com mulheres de Moçambique, França, Alemanha, Itália, Espanha, Chile, Guatemala e Argentina, todas praticantes da metodologia Teatro das Oprimidas, e teve como tema “Pelo fim da violência contra as mulheres”. O Encontro foi composto de muitos espaços de formação, contando com 4 dias de laboratório em que se debatia as diversas opressões que atingem as mulheres dos três continentes presentes, e rapidamente elas foram encontrando semelhanças e trocando sobre alianças e mecanismos de defesa. A preparação do coletivo Madalena Anastácia para o evento foi a elaboração do espetáculo “Qual é o seu lugar?”, que aborda a presença única e solitária de uma pessoa preta num determinado espaço.

Apresentação de “Qual é o seu lugar?”. Foto: Ludivine Panot.

“É sempre uma única pessoa preta que vai ocupar qualquer lugar de poder, seja uma única atriz, uma única modelo… a gente está questionando os mecanismos de embranquecimento que levam você a estar naquela única cadeira”

Eloanah Gentil, atriz

Lá, elas também apresentaram a performance “Mulher não é tambor – briga de marido e mulher”. O nome foi adaptado para o contexto, uma vez que a performance tratava de violência doméstica mas “Mulher não é tambor” é uma expressão mais conectada à cultura da Guiné-Bissau mais íntima da percussão. Maiara lembra da reação à performance: “Elas se viam nas situações, elas estavam fervendo. (Elas falavam) ‘Eu sei o que é isso aí, o homem bate na mulher, aqui isso acontece assim…”

Marcha contra a violência e a resposta do opressor

Também fez parte da programação do encontro uma marcha, com o tema “Não à violência contra as mulheres”, para a qual as mulheres do evento haviam se preparado de modo a expressar a indignação e chamar a atenção da sociedade. No entanto, dois dias depois aconteceu uma marcha em protesto à violência de mulheres contra homens, motivada pela mutilação de dois violadores. A marcha dos homens rapidamente chamou a atenção e teve mais visibilidade, reforçando o lugar de poder que eles exercem na sociedade de Bissau. As mulheres do evento, então, fizeram um movimento de resposta, com um manifesto artístico-poético, acionando emissoras de televisão e alcançando centenas de pessoas numa live. Naquele mesmo mês, haviam sido registrados três casos de feminicídio, inclusive contra meninas, motivados por machismo, e um dado indica que 67% das mulheres de Guiné-Bissau sofrem violência doméstica.

Passeata levou a manifestação pelo fim do feminicídio em diversas línguas. Foto: Rachel Nascimento.

As rotas que levaram ao teatro do oprimido

Maiara Carvalho é atriz, formada em Pedagogia, tem 27 anos. Moradora da Maré desde os 7, viveu os primeiros anos da vida em Queimados. Seu primeiro convite para o teatro veio quando ela praticava capoeira no Piscinão de Ramos. Ela já era multiplicadora na capoeira quando foi assistir a um festival no Centro de Artes da Maré com apresentações dos grupos de Teatro do Oprimido presentes no bairro. “Eu fui e estavam rolando várias apresentações dos grupos daqui do entorno da Maré. Tinha o Marear, o MareMoTO e o Maré 12. (…) Eu fui a essa apresentação e entrei em todos os fóruns, todas as intervenções, e aí no final do evento falaram ‘agora você oficialmente faz parte do grupo’ e eu virei atriz ali”. Ela entrou para o Maré 12 e em alguns anos se tornou coordenadora. Começou a frequentar também o Centro do Teatro do Oprimido, na Lapa, tornou-se coringa (pessoa que guia uma peça-fórum do teatro do oprimido), e em 2018 entrou para o colegiado do CTO. Dois anos depois, uma nova formação do colegiado se fez, pela primeira vez apenas com jovens pretos favelados: Maiara e Gabriel Horsth da Maré, e Eloanah Gentil de Niterói. Eles formam a atual coordenação.

Maiara Carvalho (de branco) e Eloanah Gentil fazem parte do primeiro colegiado do CTO formado por jovens pretos e periféricos. Foto: Rafael Lopes.

Eloanah Gentil é produtora cultural de formação, criada no Complexo do Viradouro em Niterói, e entrou para o Teatro do Oprimido aos 14 anos, mais especificamente no grupo Pirei na Cena, que funciona no Hospital Psiquiátrico de Jurujuba. Após mais de 15 anos no Teatro do Oprimido, e hoje coordenando o Teatro das Oprimidas, ela identifica o impacto que teve em sua vida: “Eu acho que a maior importância é que eu me reconheço como cidadã, como pessoa, na vida. Porque para uma mulher preta, favelada, se ver como ser, tem muitas nuances, e eu não só me vejo como tenho certeza que sou um ser. E eu busco que pessoas da minha comunidade também se vejam como seres”.

O Teatro das Oprimidas e a rota ancestral

Segundo Maiara e Eloanah, o Teatro das Oprimidas é um projeto que elas coordenam, e realizam formações em alguns lugares como Niterói e Duque de Caxias, mas é também uma metodologia. “O Teatro das Oprimidas pensa a coletividade, não está pensando o indivíduo. No teatro do oprimido a gente pensava em situações particulares. No Teatro das Oprimidas a gente pensa como a gente protagoniza, como a gente tira a mulher desse lugar de culpabilizada, de vitimada, e como a gente também pensa os avanços que essa metodologia pode ter”, explica Maiara.

Registro de atividade do evento. Foto: Rachel Nascimento.
Atividade do Laboratório Teatro das Oprimidas. Foto: Ludivine Panot.

Aplicar essa metodologia num encontro com 55 mulheres de nove países diferentes serviu, então, para fortalecer Maiara e Eloanah nas formações que fazem aqui no estado do Rio. Como mulheres pretas em diáspora, decidiram chamar essa ida de rota ancestral.

“Quando a gente faz essa rota ancestral, isso significa que as mulheres da Maré estão indo, as mulheres do Viradouro estão indo, que as mulheres de Caxias estão indo… todas essas que estão num trabalho contínuo com a gente aqui no Brasil pensando o fim da violência contra a mulher”.

Maiara Carvalho, atriz

Logo após a volta, elas aplicaram os conhecimentos em trocas e eventos que aconteceram no início de dezembro, dentro da programação do CTO e do Teatro das Oprimidas.

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