Travessias 5: o tempo todo, opressão e resistência

Eventos, Segurança, Utilidade pública

Por Carolina Vaz

Mareenses já podem visitar a mais longa exposição de obras que o conjunto de favelas abriga todo ano: Travessias. A abertura da quinta edição aconteceu no último sábado, 06 de maio, e atraiu dezenas de pessoas não somente para apreciar as obras de 14 diferentes artistas, mas para curtir as atrações musicais da noite: MC Martina, do Alemão, com a batida de Digitaldubs, Larissa Luz, e o rapper Rico Dalasam.

Sociedade em emergência

Desta vez, o tema do Travessias foi Emergência. Isso porque traz uma série de questões a respeito das diversas opressões e violências às quais brasileiras e brasileiros são submetidos, mas também traz as diversas formas de resistência possíveis. Isso pode se dar de forma mais objetiva, como no vídeo sem som “Teste do lápis”, de Paulo Nazareth, no qual um homem negro, com um black power, recebe em seu cabelo diversos lápis que nele ficam presos. Ou, de maneira mais subjetiva, a instalação Soterramento, de Jota Mombaça, composta de um monte de terra e duas telas com vídeos nos quais uma pessoa sai da terra, aparentemente libertando-se de algo.

“Teste do lápis”. Foto: Carolina Vaz
“Soterramento”. Foto: Carolina Vaz

Curador: expor na Maré causa um eco diferente

Segundo o curador, Moacir dos Anjos, a organização das obras faz com que os trabalhos “cresçam” em intensidade visual, indo desde instalações com cores mais sóbrias a filmes e objetos coloridos. E, o tempo todo, trabalha com a opressão e resistência: “É quase como se na exposição fosse elencada uma série de questões que oprimem, deprimem, violentam e aqui e acolá fossem surgindo elementos de resistência, mas no final do percurso você vê mais colocada essa dimensão de que é necessário resistir, de que a arte de determinada maneira se põe contra essas forças regressivas que nos afetam negativamente”, afirmou. Ele acredita que, embora nem ele e nem todos os artistas sejam “crias” da Maré, as questões trazidas nas obras são questões de metrópole, que afetam qualquer pessoa numa cidade grande brasileira com desigualdades gritantes. E, embora ele já tenha trabalhado muito a relação entre arte e política, tem uma expectativa nova sobre a exposição especificamente na Maré: “Trazer uma questão dessa para o centro do Rio de Janeiro, num espaço como o Bela Maré e no contexto da Maré, é um desafio e aprendizado muito grande. Faz com que as obras aqui certamente ecoem de forma diferente do que se estivessem no MAM, ou no Paço Imperial, etc. Aqui nós temos a possibilidade de essas obras se relacionarem de forma mais rica com os visitantes”.  O objetivo final, segundo Moacir dos Anjos, é que as obras causem sentimentos nas pessoas, seja de identificação, ou de desconforto, mas que ativem algo nelas.

Foto: Carolina Vaz

As obras

Os sentimentos de opressão e libertação não vêm aleatoriamente: seguindo-se a exposição desde a entrada do Galpão até o final, um grande incômodo transforma-se numa grande reflexão e junção de forças para resistir. A primeira obra, um simplório pódio com números demarcando primeira, segunda e terceira posição, leva o nome de “Pódio para ninguém”, e é de autoria de Lais Myrrha, que teve o objetivo de mostrar o quanto a arte não é objetivamente glorificada, e em tempos diferentes pode ter, ou não, seu lugar no pódio da opinião pública.

“Pódio para ninguém”. Foto: Carolina Vaz

Em seguida, 23 fotos, muito parecidas entre si, fazem lembrar um momento lamentável que o país viveu há cerca de um ano, com a tirada de Dilma Roussef da presidência do país, momento em que assumiu Michel Temer e um novo grupo de ministros. As fotos da obra “Tratado”, de Clara Ianni, mostram as mãos de Temer e dos ministros, todos homens aparentemente da mesma faixa etária, assinando os termos de posse do novo governo. Outra obra que lembra um episódio semelhante é “A República”, de Marilá Dardot, composta de três bandeiras: uma preenchida com frases em toda a sua extensão retangular; a outra com frases formando um losango e a outra formando um círculo. E essas frases, sobrepostas e confusas, fazem referência aos pronunciamentos dos deputados federais que votaram pelo início do processo de impeachment da ex presidenta, em nome de suas famílias, de seus estados, sua fé, etc.

“Tratado”. Foto: Carolina Vaz
“A República”. Foto: Carolina Vaz

A violência do racismo não poderia ficar de fora da exposição, e o tema vem em diversas obras, para além do vídeo de Paulo Nazareth já mencionado. Ele mesmo traz mais três obras, em panfletos: “Homem Negro Afro Indígena Caminha pela Maré”, “Aqui y La” e “Auto Declaração de Homem Negro Afro-Indígena/Afro Borum”, e os panfletos trazem relatos, fictícios ou verdadeiros, do que significa ser negro no Brasil.

No meio do galpão, uma mesa com tampo de vidro guarda objetos aparentemente inofensivos e até uteis: garrafa de vidro, pedaço de poste, lâmpada fluorescente, fila silver tape, algumas pedras, tijolo e pavimento de calçada, trava para bicicleta, corrente de ferro e outros. No entanto, a obra “Suplício #4, de Jaime Lauriano, indica objetos que já foram utilizados para linchamentos ao longo da história do Brasil, principalmente contra pobres, jovens e negros. Jaime Lauriano também disponibiliza um papel explicativo de cada objeto na mesa, com suas composições e dimensões. O nome desse papel é “#Suplício 6”.

“Suplício #4”. Foto: Carolina Vaz

No caminho das opressões e resistências, a obra “Manter-se aterrorizada / Tornar-se terrível”, de Regina Parra, com as palavras em luz de LED na parede, tratam do cotidiano feminino de ter que lidar com a violência, desde o assédio verbal na rua até as formas de violência mais cruel. E, ao mesmo tempo que o medo, vem a resistência: é preciso ser considerada terrível para sobreviver. Embora a intenção da obra seja falar do mundo feminino, ela pode ser interpretada de outras formas. Esta foi a obra favorita de Caroline Andrade, de 15 anos, moradora da Nova Holanda: “Essa obra relata muito aqui, nós vemos muita violência”. Mas não somente violência: embora essa tenha sido a primeira vez de Carolina no Travessias, ela tem o hábito de frequentar os espaços de lazer da Maré. Lona Cultural, Vila Olímpica e biblioteca, na sua opinião, trazem atividades culturais de qualidade.

“Manter-se aterrorizada / Tornar-se terrível”. Foto: Carolina Vaz

Questões indígenas e latino-americanas também estão presentes na Emergência. No fundo do galpão, é projetado em uma parede inteira o filme “Bárbara Balaclava”, de Thiago Martins de Melo, no qual ilustrações em movimento, com sons de ambientes, tiros, animais e músicas mostram cenas de violência contra indígenas e negros, desde a chegada das caravelas de Portugal, os navios negreiros, soldados marchando e atirando contra índios, que empunham facões e atiram flechas. Já a obra “Transição de Fase”, de Lourival Cuquinha, traz 33 fotos de imigrantes ambulantes em Recife, São Paulo, Rio de Janeiro, Paris e Londres, e objeto relacionados a essas pessoas.

“Transição de Fase”. Foto: Carolina Vaz

Bem no centro do Galpão Bela Maré, está uma obra viva, que ao final do Travessias, em julho, estará diferente. Trata-se de “O jardim adormecido [da Maré]”, de Rosana Palazyan: um jardim, com terra e pequenas plantas, numa estrutura com o formato da Maré, sustentado com estacas de madeira, fazendo referência ao passado de palafitas do bairro. Próximo ao jardim, mais uma obra audiovisual: o curta “Faz que Vai”, de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca, que referencia um passo do frevo (Faz que Vai) mas traz novas danças com alguns passos do frevo por quatro diferentes bailarinos.

“O jardim adormecido [da Maré]”. Foto: Carolina Vaz
Outro fato histórico recente que fica registrado no Travessias são as ocupações de escolas que ocorreram em todo o país.  No vídeo “Deserto”, de Mariana Lacerda e Pedro Marques, exibido como projeção numa folha de papel colada atrás de uma carteira escolar, retrata o dia-a-dia da ocupação da Escola Fernão Dias, em São Paulo, em dezembro de 2015.

Emergência também traz duas obras que “gritam” expressões em palavras rabiscadas ou instaladas. “A Cavalaria”, de Gustavo Speridião, é um grande escrito de carvão sobre a parede, aparentemente uma poesia. O mesmo autor traz, também ocupando uma grande parte de parede, dezenas de Registros de Empregados (documentos de uma determinada empresa com foto e dados de cada funcionário) e folhas de ponto dessa empresa, por volta da década de 50. A obra permite observar o passar dos anos: registros mais antigos têm fotos em preto e branco e os dados preenchidos a caneta ou lápis, enquanto nos mais novos já se utilizava máquina de datilografar e foto colorida. O nome dessa obra é “GRÁFICA UTÓPICA IMPRIME MELANCOLICAMENTE O PESADELO INSTAURADO COM A CAPTURA DAS NUVENS”.

“A Cavalaria”. Foto: Carolina Vaz
““GRÁFICA UTÓPICA IMPRIME MELANCOLICAMENTE O PESADELO INSTAURADO COM A CAPTURA DAS NUVENS” Foto: Carolina Vaz

Por fim, uma outra obra audiovisual que Emergência oferece é o filme “Saída de Emergência”, de Daniel Lima, que com uma série de registros de diferentes fatos – operações policiais, procissão, intervenção sobre Haiti nas praias – trata dos territórios onde se naturaliza o controle social.

“Saída de emergência”. Foto: Carolina Vaz

Exposição fica até julho

A exposição se manterá no Galpão Bela Maré até o dia 08 de julho, e além da presença dos educadores que podem acompanhar os visitantes para falar sobre as obras, estão programados debates sobre temas específicos como racismo, violência, transfobia e outras questões de insurgência, segundo o curador. Para ficar por dentro, acompanhe a página do Travessias no Facebook.

Serviço

Travessias 5: Emergência

De 09 de maio a 08 de julho

Terça a sexta: das 10h às 17h

Sábado: das 11h às 17h

Galpão Bela Maré – Rua Bittencourt Sampaio, 169, Maré (altura da passarela 10 da Avenida Brasil)

Como chegar:

Para quem sai da zona norte ou zona oeste, pegar ônibus parador com destino à zona sul que passe na Avenida Brasil: 480, 481, 483, 484, 495, 497, 498. Descer na passarela 10 e atravessar a passarela.

Para quem sai da zona sul ou centro, pegar ônibus parador com destino à zona oeste que passe na Avenida Brasil: 362, 349, 355, 324, 326, 328, 378, 393.

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