Violência policial e saúde mental: 1/3 da população favelada sente ansiedade

Notícias, Segurança

Por Carolina Vaz

Foto de capa: Operação na Vila Cruzeiro em maio de 2022. Fonte: reprodução.

Falar de saúde mental no conjunto de favelas que ocupa o ranking das localidades com mais mortos em chacinas policiais pode parecer fundamental, mas infelizmente o tema é negligenciado, seja pela falta de opções gratuitas ou acessíveis para a demanda existente, seja pela naturalização do cotidiano de violência pelos próprios moradores, que estão sempre “no corre” dos seus compromissos. Segundo o Instituto Fogo Cruzado, desde 2016 houve 250 operações policiais na Região Metropolitana do Rio de Janeiro com três ou mais mortos, chegando a 1008 civis. Quase metade foi só nos últimos dois anos: 106 chacinas. A Zona Norte, onde fica a Maré, é a região mais afetada pela letalidade policial, e no bairro as chacinas já mataram 36 pessoas: o quinto lugar entre as localidades com mais assassinados.

Leila Ripoll, coordenadora do grupo Psi Maré, traz algumas visões sobre os impactos desses fatos. O Psi Maré é um coletivo de 32 psicanalistas, de diferentes filiações teóricas, que desde 2018 atendem 56 pessoas gratuitamente. Os atendidos são, majoritariamente, moradoras e moradores da Maré. Ela destaca a necessidade de se compreender o sofrimento mental como algo não apenas individual, mas inserido num contexto. “O processo psicanalítico não deve ser entendido de modo separado do grupo social em que se inserem analista e analisando. (…) Particularmente, algumas categorias estão muito mais expostas à violência, vide os índices de feminicídio, dos atos violentos direcionados às populações LGBTQIA+, dos extermínio dos jovens negros e pobres, por exemplo. Essas situações frequentemente se refletem numa maior fragilidade emocional desse grupos, já que são mais indefesos”. No caso da população favelada, essa falta de defesa está não somente na ausência de segurança pública que proteja a população como também no oposto: a violência policial direcionada aos moradores.

Psicólogas do Psi Maré com a coordenadora do Museu da Maré, Cláudia Rose (no centro). Foto: arquivo pessoal.

O sofrimento psíquico perante as operações

Segundo a pesquisa Coronavírus nas favelas: a desigualdade e o racismo sem máscaras, do coletivo Movimentos, o sofrimento psíquico atinge grande parte da população favelada. O estudo realizado com 955 pessoas da Maré, Complexo do Alemão e Cidade de Deus expõe as diversas formas de violência às quais essas populações estão vulneráveis e suas consequências na saúde mental. No caso, por exemplo, das pessoas negras, são corriqueiras situações como abordagens policiais e ser vigiado quando se está numa loja. Em casos específicos de operação policial, além de todo o medo, angústia e estresse do dia da operação, as pessoas podem ter prejuízo financeiro por não terem ido trabalhar e ainda por ter a casa alvejada ou invadida, com roubo ou destruição de seus pertences.

Placa do projeto Uerê, na Baixa do Sapateiro, voltado para forças policiais em helicópteros. Foto: reprodução.

Vanessa Américo, psicóloga moradora do Morro do Timbau, relata que os moradores da Maré que apresentam sofrimento psíquico se encontram, principalmente, em estados de depressão e ansiedade. Há pessoas que utilizam medicamentos, mas nem todas que o fazem frequentam psiquiatras. Ainda, algumas só reconhecem estar com problemas como esses quando ouvem relatos semelhantes à sua vivência. Vanessa realiza rodas de conversa com educandes no pré-vestibular CPV-CEASM, e recentemente atuou no grupo terapêutico de mulheres do projeto Maré do Bem Viver.

Roda de conversa do Maré do Bem Viver. Foto: arquivo Maré do Bem Viver.

A violência armada não pode ser considerada o único fator de sofrimento e traumas dos moradores, uma vez que se convive com a violência na forma de diversas violações de direitos, mas é um gatilho considerável para ansiedade, estresse, angústia e outros sentimentos. Num dia de operação policial, por exemplo, todos são impactados e não conseguem seguir suas rotinas. Já se começa o dia acordando com som de tiros, ou com o rasante de helicóptero que faz as janelas trepidarem, ou, pior ainda, a casa é invadida por policiais. Se a operação começa de manhã, escolas e clínicas da família nem abrem. Mas se acontece mais tarde, quem está nos locais não pode sair, assim como quem precisaria ir também fica impedido.

“Uma mãe com filhos na escola se desespera porque não pode ir buscar, um idoso com hipertensão não vai poder sair de casa pra pedir ajuda porque as Clínicas da Família estão fechadas. As escolas fechadas significam menos um dia de aula e isso atrasa o aprendizado dos alunos porque nem sempre há tempo para a reposição. A violência policial impacta de várias formas”

Vanessa Américo, psicóloga

Efeitos colaterais e traumas após violência policial

Segundo Vanessa Américo, uma das respostas a esses episódios pode ser um permanente estado de vigilância: preocupação constante, estresse, medo excessivo de tudo e de todos. A pessoa pode ter dificuldade de sair de casa, até para compromissos habituais. Outro efeito colateral possível é exatamente a naturalização de um episódio como de operação policial ou troca de tiros, pelo reconhecimento da impotência de se fazer algo sobre, e também por ser tão frequente. “Se você começar a ver a violência como de fato ela é, você simplesmente paralisa a sua vida. Como eu vou reagir a isso? Se eu não posso ir contra, se não há políticas públicas que façam por mim o que deveriam fazer, eu vou achar que aquilo é comum”, argumenta Vanessa. A psicanalista Leila Ripoll reforça esse sentimento, que muitas vezes vem de uma vida inteira nesse contexto.

Operação policial no Jacarezinho. Foto: Bruno Itan.

“O uso ostensivo da força e da violência busca exterminar a vida que pulsa na favela, pois interfere diretamente no cotidiano da população gerando tensões insuportáveis, bem como uma sensação de impotência e de desvalorização”

Leila Ripoll, psicanalista do Psi Maré

Outro efeito colateral é quando se deixa de viver um luto, seja ele qual for, mas Vanessa Américo ressalta que foi em episódios de violência que a maioria da população que mora na favela já teve um familiar, amigo ou vizinho assassinado. Além da desumanização dessa pessoa, muitas vezes considerada anônima, seus parentes frequentemente ignoram o necessário momento de luto exatamente por estarem na “correria” da vida: executando seus trabalhos doméstico e remunerado, cuidados com os filhos, estudo e outros. A tristeza do luto não é anulada, e sim se transforma em outros sintomas: “O corpo vai se manifestar de outras formas, seja pressão alta, dores pelo corpo, e a própria depressão”.

Mais de 1/3 da população sente ansiedade

A pesquisa do coletivo Movimentos mostra que, das pessoas entrevistadas, 34% sentiam ansiedade com muita frequência; 30% tristeza; 29% desânimo; 19% medo/pânico. Mais de 380 pessoas afirmaram ter algum nível de depressão, e em sua maioria eram mulheres entre 30 e 39 anos. Eles demonstram, ainda, que na Maré os CAPS e Clínica da Família não dão conta de atender toda a população com necessidade de tratamento psicológico. Vale lembrar que as operações estão proibidas: a ADPF 635 (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 635) ou ADPF das Favelas, decidiu em junho de 2020 pela suspensão de incursões policiais em favela durante a pandemia de Covid-19. Mas na pesquisa do Movimentos, em setembro de 2021, relata-se que 69% dos entrevistados presenciaram ou souberam de operações nas favelas em que viviam.

Leila Ripoll reforça que a violência policial que paralisa a vida na favela se configura exatamente como o contrário do que o Estado deveria fornecer como direitos: “É uma situação que ultrapassa os sujeitos e que expressa uma injustiça extrema. São cidadãos que pagam seus impostos, trabalham e, portanto, o Estado deveria assegurar as condições para que levassem uma vida digna, mas, ao invés disso, o Estado (via forças policiais) não apenas não cumpre essa sua obrigação, mas ainda ataca esses cidadãos”.

Comentários