Vitória na Maré: o poder da Copa do Mundo na favela

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Entrevistas feitas por Ana Cristina da Silva, Carolina Vaz e Raysa Castro.

Texto por Ana Cristina da Silva.

Nesta sexta-feira (9), a seleção brasileira abandonou a disputa pela taça da Copa do Mundo ao perder nos pênaltis para a Croácia nas quartas de final. Para o Conjunto de Favelas da Maré, que há anos segue com tradições para assistir aos jogos da seleção, o resultado foi devastador. Porém, o maior evento esportivo do mundo vai muito além do futebol, principalmente para a população periférica. Os períodos da Copa do Mundo trazem à tona sonhos de infância e coletividade, juntando as mais diversas pessoas, até mesmo aquelas que não acompanham o esporte, para uma grande festividade que inunda as ruas enfeitadas de verde, amarelo e azul. Apesar do sonho do hexa pedir por uma espera de mais 4 anos, a favela da Maré sai vitoriosa com boas recordações desta Copa do Mundo.

FUTEBOL: UM SONHO DE INFÂNCIA

Quando se pensa em futebol dentro da favela logo se pensa nos jovens, que desde muito novos se divertem pelas ruas e quadras da Maré jogando bola com os amigos. A paixão pelo esporte começa humilde, sem uniforme e sem chuteira, às vezes em uma rua esburacada e com uma bola que sequer é de futebol. Tudo isso porque a grande maioria das famílias periféricas vive em uma escassez financeira, enquanto as ruas se preenchem de pequenos talentos. O sonho de se alcançar o futebol profissional nasce cedo na favela, e são projetos como o “Futuro da Maré” que viabilizam os primeiros passos desta intensa caminhada. 

Juninho, de apenas 10 anos, é um dos destaques do projeto que conta com cerca de 60 alunos. Foto: José Bismarck.

Criado pelo professor Flávio Alves, morador da Nova Holanda formado em Educação Física pela UFRJ, o projeto atende seus alunos no campo da Rubens Vaz. Para participar do projeto, Flávio cobra uma taxa de 50 reais, mas entende a situação de famílias que não possuem condição de pagar, permitindo então que algumas crianças joguem com seus alunos e aprendam de forma gratuita. Para ele, o futebol vai muito além de marcar gols e vencer partidas, por isso ensina que para ser um bom jogador é preciso alcançar quatro pilares básicos: psicológico, físico, tático e técnico. Muito do que aplica aprendeu com o amigo Elton Bispo, fundador do primeiro clube da Maré: “O Elton sempre me ensinou a mostrar às crianças esse caminho (…) já veio aqui o Botafogo, o Flamengo falou que vai vir também e a gente tem jogo marcado contra o Fluminense lá em Xerém. Isso é pra trazer pra eles essa questão de ‘será que uma criança pode sair daqui e jogar num clube grande?’ Hoje tem um exemplo aí, João Gomes. No final do ano o João Gomes estava treinando com quem? Comigo”, diz o professor.

“A gente quer mostrar para eles (alunos) que eles podem. Se não forem jogadores de futebol, vão ser médicos, vão ser professores, vão ser faxineiros, podem ser pedreiros, mas uma coisa que a gente não quer é que eles se voltem para a criminalidade”.

— Flávio Alves, professor do projeto Futuro da Maré.

Flávio ensina crianças de 4 até 12 anos, mas também treina jovens acima dos 13 que querem muito se tornar jogadores de futebol. Foto: José Bismarck.

Apesar dos meninos serem maioria dentro do projeto, as meninas que passam por Flávio também brilham muito em campo. A prova disso é Ester Malaquias, de 18 anos. Ester começou a jogar futebol quando ainda era bem nova, após ouvir de um coleguinha da escola que meninas não sabiam e nem podiam jogar bola. Na tentativa de provar que ele estava errado, a mareense descobriu sua paixão pelo esporte e nunca mais largou. Foi por volta de seus 12 anos, enquanto jogava descontraída com alguns amigos, que ela chamou a atenção de Flávio que logo fez o convite para treiná-la. Com pouco tempo ele a levou para o Portuguesa, onde não ficou muito, já que ela era uma das únicas meninas do clube. Sem desistir, a jovem que hoje joga no CFZ (Centro de Futebol Zico), também passou por clubes como América e Belford Roxo. No entanto, Ester nunca deixou de treinar com Flávio. Segundo ela, “ele não se preocupa só com o futebol em si, mas na maneira de fazer o seu futebol”.

O Brasil pode ter sido eliminado da Copa do Mundo nas quartas de final, mas isso não anula seus grandes momentos. Quando questionada sobre os jogos da Seleção Brasileira, Ester logo se empolgou e o motivo não poderia ser outro: o gol do camisa 9, Richarlison, que na estreia do Brasil levou os torcedores à loucura com um gol de voleio no segundo tempo contra a Sérvia. “Foi um gol esplêndido, foi o melhor gol que teve na copa. Sem contar os status, só dava ele. Poxa, eu amei o gol do pombo e quero fazer um gol desses, se Deus quiser eu vou consegui”, diz a moradora da Nova Holanda. 

Ester Malaquias chama a atenção com a sua habilidade com a bola. Foto: José Bismarck.

Futebol pra mim significa a vida. É uma paz, é uma tranquilidade. (…) É uma grande honra jogar futebol. Eu até me emociono em falar, porque é, tipo assim, é sonho, né, de todo mundo. Ser um jogador, uma jogadora é difícil, mas também quando a gente conhece realmente e profundamente a gente vê que o futebol é uma tranquilidade, é algo pra gente relaxar. A gente fica nervoso numas partes, às vezes a gente quer afrontar um ao outro, mas independente de tudo isso é uma tranquilidade, é algo que faz a gente esquecer coisas ruins, é algo esplêndido. Eu amo o futebol, futebol pra mim é a minha vida e eu quero levar isso pra vida toda.

— Ester Malaquias, jogadora do CFZ.

COMEMORAÇÃO NO ESTILO MAREENSE

O Conjunto de Favelas da Maré é um território que constantemente sofre com violações de direitos, onde a população sente diariamente os impactos da ausência do poder público. Em um ano tão complicado, a Copa do Mundo chega como um respiro. Afinal, para a Maré, o maior evento esportivo do mundo não é apenas futebol e sim tudo aquilo que ele proporciona. Os moradores se reúnem em suas ruas, muitas vezes fazendo uma vaquinha para comprar decorações. O ato de se reunir para pendurar bandeirinhas e chamar os artistas e as crianças para pintarem o chão e as paredes das ruas já diz: Isso é Copa do Mundo. A tradição de se reunir com familiares e amigos para comer churrasco e tomar aquela cervejinha gelada enquanto assistem a seleção brasileira em campo também grita: isso é Copa do Mundo. E, por falar em gritar, na favela a Copa do Mundo não é sobre vencer, é sobre festejar mesmo após tantas dificuldades. 

Moradores da Carlos Lacerda na Nova Holanda se juntaram para decorar a rua. Foto: José Bismarck.

Vindo de formas diversas, uma das grandes vitórias da Maré na Copa do Mundo veio graças a uma das maiores qualidades do Mareense: a criatividade. Isso, é claro, junto da sua habitual capacidade em se pensar coletivamente. Seguindo com a tradição de decorar as ruas com as cores da bandeira, o influenciador Raphael Vicente pensou além e reuniu dezenas de pessoas para a gravação de um clipe. Os artistas e moradores da Maré pintaram e decoraram a rua Brasília, localizada no Parque União, para logo em seguida fazerem dela um grande cenário. No clipe, dançarinos de grupos diversos, como o Dance Maré, junto de uma parte da bateria da Escola de Samba Gato de Bonsucesso e demais moradores da favela apresentaram uma versão remix da música Waka Waka (This Time for Africa), de Shakira. O hit que marcou a Copa do Mundo de 2010, foi reformulado com batidas de funk e coreografias adaptadas.  

Lançado no dia 27 de novembro no Fantástico, da Rede Globo, e publicado também nas redes sociais de Raphael, o clipe Waka Waka Remix chegou aos olhos de Shakira que, para além de repostar o vídeo em suas redes, também convidou o mareense para dançar com ela em sua próxima visita ao Brasil. Enquanto no Youtube o vídeo já conta com mais de 100 mil visualizações, no Instagram Raphael já conquistou 262 mil curtidas. Assista clicando aqui.

Waka Waka Remix foi gravado na Rua Brasília e também no campo de futebol do Parque União. Foto: Reprodução.

Cada vez mais entende-se que comemorar a Copa do Mundo é uma tradição que vai sendo passada de geração em geração. Moradora do Morro do Timbau, Dona Ioneide Cipriano da Costa, mais conhecida na comunidade como Dona Piva, enquanto decorava o portão de seu beco, lembrou de quando as crianças do entorno disputavam para ganhar as bolas que usava junto das bandeirinhas como decoração de Copa. “Eu botava umas bolinhas para as crianças…Eu botei 8 bolas daquele tamanho de futebol. ‘Essa aqui é minha tia Piva, essa aqui é minha!’. Caramba, eu tive que gravar tudinho, escrever, pra quando eu fosse tirar falar: ‘toma tua bola, toma tua bola’”, conta nostálgica ao concluir que hoje essas crianças já estão casadas e com filhos.

“Eu gosto, eu me amarro nisso aí. De quatro em quatro anos eu faço”, Dona Ioneide sobre arrumar a decoração para a Copa do Mundo. Foto: Raysa Castro.

Com a Copa do Mundo acontecendo no final do ano, o dinheiro para comemorar e decorar foi menor do que nas edições anteriores, mas nada que impedisse que tudo acontecesse. Enquanto Dona Piva arrumou todo o beco só com a ajuda de sua sobrinha, Seu Manoel José e Seu Luiz Carlos informaram que na rua das Oliveiras, na Baixa do Sapateiro, eles não conseguiram participar da arrumação por conta da idade, mas colaboraram com o dinheiro para a compra de materiais como tinta e bandeirinhas. “Aqui sempre fazem (a decoração da rua), é sempre o mesmo pessoal… junta um grupo e a gente divide o prejuízo”, diz Seu Luiz. No entanto, tal como Dona Ioneide junta a família para assistir aos jogos do Brasil durante um churrasco, os moradores da rua das Oliveiras fazem uma vaquinha, fecham a rua e arrumam uma TV para assistir tudo da mesma forma. Afinal, em época de Copa do Mundo, ganhando ou perdendo, o mareense sempre acha um jeito de celebrar.

Confira a decoração das ruas abaixo:

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