10º Festival de Cenas Curtas faz sucesso e lota Museu da Maré
Entrevistas: Ana Cristina da Silva e Carolina Vaz
Texto: Raysa Castro
Foto de capa: José Bismarck
Mais uma vez o Festival de Cenas do Entre Lugares lota sua casa, o Museu da Maré. Com início às 18h, no último dia 05/08 o local já se encontrava completamente cheio de pessoas à espera do décimo festival que retornou com toda a força em 2022.
O festival, que segue atraindo mareenses e pessoas de todo o Rio de Janeiro para prestigiar o trabalho do teatro favelado, começou a festa com apresentação do grupo de hip-hop do Museu da Maré apresentando a coreografia “A Libertação Conecta”, elaborada por Lilian Lima e Helena Bevilaqua.
A elaboração das cenas do Festival Maré em Cena é pensada e organizada pelos próprios alunos do Entre Lugares com auxílio dos arte-educadores e coordenadores do projeto, e desta vez eles realizaram a apresentação de 19 cenas, cinco a mais do que no ano de 2022. Além do estudo para atuação, os alunos contam com aulas de corpo com a diretora Gabriela Luiz, responsável por desenvolver o movimento do corpo como ferramenta para o teatro. “Já é o segundo ano que a gente consegue fazer uma grande performance coreográfica para mostrar o corpo desses atores, que são atores, artistas multi, desenvolvendo um trabalho de coreografia, mas uma coreografia poética, uma coreografia pra cena” conta Gabriela sobre a cena musical Favela Rouge apresentada pelos alunos.
Foram cerca de dois meses de ensaio, e estavam em cena 48 atores e atrizes. Em algumas cenas, os atores pareciam não encontrar dificuldades para a atuação, muitas vezes trazendo para o palco sua própria realidade, falando sobre assuntos que julgam necessários ou mergulhando e vestindo a mensagem e a proposta da peça. “Isso é fruto de um trabalho sobre o teatro sobre um lugar de resgate mesmo, sabe? De identidade, de valorização, de empoderamento (…) nós somos artistas de teatro, somos uma equipe pequena aqui de cinco, seis pessoas para dar conta de 19 cenas, de 40 adolescentes e adultos. O teatro, ele opera não só na criação e na arte mas na vida, né? E quem dá conta da vida? O teatro”, diz o diretor Tiago Ribeiro. A diretora Renata Tavares conta que, chegando perto da data, os atores se dedicavam ainda mais: “A gente passou essa última semana ficando aqui até 5 horas da manhã todo dia… é fruto de uma dedicação e amor ao teatro, assim, que é o nosso pilar. A gente ama o que a gente faz.”
O projeto trouxe peças com figurinos e cenários característicos da época como na cena A Tragédia de MacBeth de William Shakespeare escrita em 1605, protagonizada por Gilvan Santana (como Macbeth) e Yasmin Rodrigues (como Lady Macbeth), até cenas adaptadas para os dias atuais no cenário e figurino como Romeu e Julieta protagonizada por Taylon Araujo (como Romeu) e Jade Cardozo (como Julieta). “A gente pensou em trazer pra atualidade o contexto da cena, e a gente pensou também em adaptar o texto, só que ia quebrar o paradigma de Shakespeare (…) e aí a gente conseguiu trazer na estética, no cenário, figurino, nas músicas, trilha sonora, gestos do corpo” relatou Taylon.
Contando com a apresentação de Bianca Barbosa, Gabriela Luiz e Leona Kalí, que ocupavam o palco entre uma cena e outra, as cenas do Festival foram julgadas por um júri de 13 convidados, e estavam presentes nomes relevantes da dramaturgia como Valéria Monã, Dani Câmara, Wanderley Gomes entre outros. Alguns dos jurados chegaram a ser anteriormente alunos do projeto, e hoje são artistas formados como Matheus Frazão, Nlaisa Luciano e Patrick Congo. Ao longo das apresentações se avalia não apenas a atuação, como também composição da cena, figurinos, cenário… E assim, o grupo decide ao todo sobre 9 categorias: melhor cena (primeiro, segundo e terceiro lugares), melhor maquiagem, melhor figurino, melhor cenário, melhor ator, melhor atriz, melhor direção, melhor trilha sonora e ator e atriz revelação.
O público não fica de fora e também tem seu voto de peso na categoria de Melhor Cena Pelo Júri Popular, que teve como vencedora a cena Uma Palavra Por Outra do dramaturgo Jean Tardieu, espetáculo de expressão através do Teatro do Absurdo, protagonizada por Raphael Vicente, Maryana Oliveira e Brenda Aguiar.
Premiados
Nesse ano, muitos dos atores estrearam pela primeira vez em um festival, e na categoria de Atriz Revelação venceu Eduarda Bello com a cena Essa Propriedade Está Condenada. A cena retrata a vida de Willie (Eduarda), uma menina que, pelas adversidades da vida, precisa amadurecer precocemente, e nos arredores de uma linha de trem encontra Tom (Vitor Gabriel), menino mais velho com quem ela compartilha suas fantasias e trajetórias. E teve Taylon Araújo, que se aventurou fazendo três cenas distintas – em Romeu e Julieta de William Shakespeare, Só Um Sorvete e também O Amor, ambas de Rafael Souza Ribeiro – levando o prêmio de Ator Revelação. “Eu acho que foi importante pra minha formação tudo o que foi passado durante esse tempo, porque eu já fiz teatro, mas faz muito tempo e eu resolvi voltar agora. E eu acho que deu um gás a mais, sabe? Me ajudou a chegar onde eu tô chegando e evoluir cada dia mais e mais” conta Taylon.
Para o jurado Matheus Frazão a categoria de Melhor Cena é uma das mais difíceis de serem avaliadas porque, segundo ele, é um conjunto de observação de toda a obra. A cena vencedora da categoria foi Em Nome de Deise, única cena de texto autoral, escrito por Katia Deusa com atuação da própria junto a Jade Cardozo, Aloha Lago, Carlos Emanuel e Mirella Souza. A cena relata a história de quatro mulheres trans, com vivências diversas mas algumas lutas muito parecidas: a luta para a desmarginalização de seus corpos, terem seus direitos respeitados e a oportunidade de não serem apenas sobreviventes mas de viverem plenamente seu direito à vida. A cena foi protagonizada por mulheres transexuais, ou seja, mulheres essas que sabiam da realidade que estava sendo contada. Carlos Emanuel, que interpreta dois personagens na cena, comenta: “A comédia é o que mais alegra o público, mas às vezes tem o choque de realidade. A gente tem que mostrar pra sociedade que ela ainda não mudou, que ela precisa mudar”.
O prêmio de Melhor Cena foi entregue com muita emoção pelo diretor Tiago Ribeiro e pela jurada Nlaisa Luciano, que celebrou e reafirmou a necessidade de corpos trans ecoarem suas vozes no teatro: “Para que vocês se sintam estimuladas também a construir a narrativa de vocês, não só nos clássicos mas também nessa contemporaneidade porque vocês são o novo clássico do futuro (…) eu estou muito honrada de estar compondo esse júri pela primeira vez e honrada de saber que a melhor cena desse festival é de vocês” disse Nlaisa Luciano ao entregar o prêmio.
O momento da premiação foi o que demonstrou o espírito de coletividade do projeto: independente da cena ou artista premiado, a cada novo anúncio se comemorava em grupo a vitória de um ou uma colega do teatro. Foi nesse clima de celebração e superação dos obstáculos individuais de cada artista do projeto que o 10º Festival foi finalizado já no dia seguinte, quase no raiar do domingo.