1º Desfile de moda sustentável acontece no Museu da Maré
Texto e foto da capa por Ana Cristina da Silva.
Normalmente quando se fala em moda, logo as pessoas pensam nos grandes desfiles da Semana de Moda em Nova York, Londres ou Milão. Em grifes como Prada, Gucci e Dolce & Gabbana. Tudo isso porque a comunicação de massa sempre fez questão de associar a moda ao luxo, a conectando com pessoas de alto poder aquisitivo, seja através da televisão ou do cinema. No entanto, para o estilista e pedagogo Almir França, “o grande fomento cultural, criativo e produtivo está nas favelas e periferias”. Foi com esse pensamento que ele, que também é coordenador dos projetos Eco Moda e Escola de Divines, realizou o primeiro Desfile de Moda Eco Fashion Day, no Museu da Maré.
Betto Gomes, camisa branca, possui um ateliê na Vila do João. Foto: Ana Cristina da Silva.
A primeira das 3 coleções apresentadas no desfile foi a coleção “Maré de Encantos”, do estilista mareense Betto Gomes. Para esse trabalho Betto contou com 3 costureiras: Didi, Ivonete e Lusineide. No crochê, a encarregada foi Luciana, do Ateliê da Lu. “As peças são produzidas de forma artesanal, com tecidos excedentes que seriam descartados. Cada peça é única, com qualidade nos acabamentos, levando até dois dias para uma peça ficar pronta. A coleção com ar esportivo chic mescla o streetwear com formas orientais como kimonos, japonas, golas e mangas para homens e mulheres que se preocupam com estilo, conforto e exclusividade”, conta o estilista.
Fotos da galeria: Ana Cristina da Silva.
“Hoje, na indústria da tecelagem, você produz duas toneladas de tecido corrido. Dessas duas toneladas, 500kg vão ser descartados, não passa no controle de qualidade e, no geral, esses tecidos são incinerados. Eles geram mais carbono para o ambiente, então hoje já tem alguns profissionais pensando quanto a esse tecido. Ele pode ser, sim, uma nova possibilidade de vestir. Então, a coleção do Betto tinha essa pegada”.
— Almir França, estilista e pedagogo.
Inicialmente, Almir (camiseta branca) criou a Escola de Divines para pessoas trans, estas pessoas levaram amigos e familiares que costuravam e hoje a escola abraça um público diverso. Foto: Ana Cristina da Silva.
Todo o estudo e trabalho dos integrantes da Escola de Divines fez nascer as duas últimas coleções apresentadas no desfile. Tendo como foco os resíduos do jeans, a segunda coleção mostrou que é possível se criar várias peças a partir de uma calça: “Não é apenas sobre um patchwork, uma colcha de retalho, mas como que você pode ressignificar uma calça jeans pelo corpo inteiro. Por exemplo, você sempre pensa em calça vestindo a parte de baixo, mas essa calça pode vestir também a parte de cima. Então, para essa coleção, elas tiveram esse exercício. ‘Você vai fazer vestido? Ok, faz a partir da calça’. ‘Você vai fazer uma saia? Ok, faz a partir da calça’”, explicou Almir.
Fotos da galeria: Ana Cristina da Silva.
Com um impacto tão grande quanto as outras duas coleções, a terceira e última coleção apresentada no desfile foi uma pequena amostra do que a Escola de Divines já vem trabalhando há alguns anos, um trabalho feito a partir da doação de resíduos de outras empresas. No geral, trata-se da criação de peças de roupa feitas a partir do uniforme de trabalhadores, que feitas de brim, são incineradas e geram uma grande quantidade de carbono.
“Pagam uma fortuna para as empresas de logística incinerarem esses uniformes e é absurdo, porque você não consegue visualizar esse trabalhador. Veja como o processo da contaminação é tão malvado, não é só o carbono, mas como a gente invisibiliza o sujeito que está no poste ligando a sua energia. Você não tem noção de quem é aquele cara, que você talvez encontre com ele em outra situação, com uma calça jeans e uma camisa polo. Ele consome, diariamente, por dez horas um uniforme que marca a sua condição social e quando ele para de usar aquilo, aquilo vai pro lixo”.
— Almir França, estilista e pedagogo.
Com essa coleção, Almir tenta chamar a atenção para o fato de que apesar da indústria da moda ser a segunda maior empregadora do Brasil, ela também é a segunda maior contaminadora, ficando atrás somente do setor petrolífero. “Isso é sério, estamos vestindo plástico, porque as roupas hoje são sintéticas. É o mesmo material que é feito só com a linha plástica do mercado, que a gente tanto demonizou. Mas o que mata o peixinho não é aquele plástico, é o retalho do plástico, é o retalho do tecido que você varre para o seu ateliê”, conta o estilista que busca com isso provar pra indústria do uniforme que é possível reutilizar a peça do trabalhador em outros aspectos. Reimaginando e recriando as peças do uniforme de um gari ou eletricista, por exemplo, e levando para o campo das vestimentas casuais.
Fotos da galeria: Ana Cristina da Silva.
Lançada no Dragon Fashion, em Fortaleza, esta foi a terceira vez que a coleção foi apresentada. No entanto, tanto para Almir França, quanto para Betto Gomes, há uma importância muito grande de se apresentar todos estes trabalhos dentro da favela, porque para Almir, hoje, as tendências da moda e de comportamento vêm justamente das favelas e periferias. “É o shortinho da Anitta que faz as meninas quererem um shortinho, até ontem era o maiô da Balenciaga. A gente tem que olhar pra isso. A minha tentativa aqui é falar pra essa cidade partida que nós que estamos aqui não precisamos mais atravessar, ao contrário, é você que tem que vir aqui. Porque o que faz hoje uma Anitta, uma Pablo Vittar, uma Gloria Groove, uma Ludmilla chegar no grande mercado da música, não é a periferia? Então você tá me dizendo que a tendência é a favela”, diz Almir França.
“A moda periférica vem sendo uma forma de resistência e afirmação de identidade para comunidades que, historicamente, foram marginalizadas pela indústria tradicional. Assim, ocupamos cada vez mais espaço, ganhando reconhecimento no universo da moda como um todo. Por que não ter uma semana de moda na Maré?”
— Betto Gomes, estilista.
No galpão do Museu da Maré foram mais de 10 modelos que desfilaram usando diferentes peças de roupas. Entre eles, mareenses como a atriz, modelo, cantora e costureira, Jade Cardoso. Com 3 anos na carreira de modelo, tendo desfilado em diferentes locais com Almir França, ela acredita que trazer um desfile de moda para a Maré é uma forma de inclusão:
Jade Cardoso em frente a barraca de Giza Lima de Oliveira, no Museu da Maré. Foto: Raysa Castro.
“Eu acho que é uma forma de estar sempre trazendo a cultura pro favelado. Acho que a moda, assim como qualquer outra arte, tem que ser para todes. Quando eles trazem isso pra favela, isso acaba inspirando outras pessoas que não se sentem confortáveis. ‘Ai, eu queria muito ser modelo, mas meu corpo não é legal pra fazer isso’. E aí, quando elas veem uma modelo, sei lá, plus size, uma modelo trans na passarela, isso acaba inspirando mais. E hoje teve bastante pessoas trans na passarela, então acho que isso atiça muito o lado artístico das pessoas”.
— Jade Cardoso, modelo.
Enquanto o desfile acontecia no galpão, no pátio do Museu estavam dispostas diferentes barracas, em sua maioria com a venda de peças e bolsas feitas pelos integrantes da Escola de Divines. Giza Lima de Oliveira, moradora da Pechincha, era uma das pessoas que estava vendendo seus trabalhos no local. Trabalhando com Almir há mais ou menos 6 anos, ela faz de tudo um pouco, desde costura até bordado. Na sua barraca, por exemplo, estavam à venda algumas bolsas feitas a partir do uniforme de eletricistas e outras feitas a partir de calças jeans; vestidos e demais peças de roupa feitas com retalhos e bordados.
Começando por volta das 14h e se encerrando às 16h, o evento foi iniciado com uma apresentação da camerata do projeto Uerê e contou com apresentações das artistas drag queens, Danny D’Avalon e Desiree Cher.