3ª Jornada Favelades Universitáries debate permanência e produção de pesquisa pela juventude periférica
Por Carolina Vaz
Foto de capa: Júlia Bimi
Pela terceira vez, universitários de diversos níveis acadêmicos, pesquisadores, professores e membros de pré-vestibulares populares uniram-se na Jornada Favelades Universitáries, de 28 a 30 de novembro. Nesta edição, a programação se dividiu em três dias e três espaços, ocupando a Nave do Conhecimento de Realengo, o Museu da Vida da Fiocruz e a Faculdade de Educação da Baixada Fluminense (FEBF/UERJ), no município de Duque de Caxias.
O primeiro dia de Jornada, na Nave do Conhecimento, foi marcado pela conferência de abertura e mesas que abordaram temas como a permanência para estudantes periféricos, empreendedorismo para o desenvolvimento social e mudanças climáticas e juventudes. Além dos convidados, houve intensa participação do público ouvinte, que se identificou com grande parte dos relatos.
A mesa de abertura do evento contou com representantes de órgãos apoiadores do evento, como a Fiocruz e a Pró-reitoria de Extensão da UFRJ. Luiz Lourenço, geógrafo e pesquisador do projeto Tecendo Diálogos, comentou o início do Fórum Favela Universidade em 2019 e seus primeiros eixos de atuação focados em permanência e conflitos no ambiente universitário. Ele destacou que a presença crescente dos estudantes periféricos e favelados na universidade precisa influenciar desde as políticas universitárias até a própria produção de pesquisa: “Nós não estamos mais na época em que nós éramos rarefeitos na UFRJ, na UFF, na UERJ e nos outros espaços acadêmicos, então a gente não vai retornar para o ponto zero onde estava”.
Favela e produção de saberes
A conferência de abertura foi conduzida por Juliana Bragança, com o tema “Afirmando o que me negaram: construção de saberes em favelas e territórios vulnerabilizados”, contando com a mediação do historiador e pesquisador Felipe Eugênio, representante da Cooperação Social da Fiocruz. Há cerca de 15 anos Juliana Bragança estuda o funk e a criminalização do ritmo na sociedade e comentou o descrédito que sofreu desde o início, quando diziam que funk não era tema de pesquisa em História, mas ela não desistiu: “Quando a gente escolhe um objeto de pesquisa a gente está trazendo quem nós somos, a gente não faz essa escolha de uma forma neutra”. Em 2017, ela publicou sua dissertação de mestrado, que em 2020 foi materializada no livro “Preso na gaiola: a criminalização do funk carioca nas páginas do Jornal do Brasil (1990-1999)”.
Hoje, Juliana é doutoranda de História Social na Faculdade de Formação de Professores (FFP-UERJ), com a pesquisa “Esse ano as coisas vão mudar: movimento funk e antirracismo no novo ensino médio”. Professora de História nos anos do Ensino Médio, ela utiliza a sala de aula para combater a criminalização do funk. Tendo se tornado uma referência na pesquisa histórica do funk, sendo ela mesma de origem periférica, Juliana comenta que é a existência de estudantes de origem favelada e periférica que vai transformar o modo como um tema é estudado, porque ele será pesquisado com respeito e compromisso.
Estudantes que promovem a inclusão
A própria Juliana teve diversas barreiras para permanecer na carreira acadêmica, desde precisar conciliar trabalho e estudo até não passar no Mestrado pela exigência de inglês. Iniciativas para eliminar ou atenuar essas barreiras foram o tema da mesa “Desafios da permanência dos estudantes favelados e periféricos na graduação e pós-graduação”. Mediada por Maria Lúcia Freitas, professora da Escola de Enfermagem da UFRJ, a mesa trouxe estudantes da graduação e da pós que se envolveram em coletivos com o propósito de ajudar outros estudantes a ultrapassar barreiras que ainda demarcam a desigualdade social e racial no ambiente universitário. Uma delas foi Luiza Braz, formanda de pedagogia da UERJ e uma das fundadoras do movimento Futuro UERJ, que ajuda estudantes que tentam ingressar na universidade com atividades como leitura compartilhada dos livros indicados para o vestibular e documentação para acesso às cotas. Embora orgulhosa do movimento, ela reconhece que eliminar as barreiras deveria ser papel da própria universidade: “É muito difícil para nós, que somos pessoas pretas periféricas, ter que dar conta de algo que era para a instituição fazer”.
Na área de Exatas e em outra universidade, a UFRJ, uma das que assumem esse papel é Andressa Azevedo, estudante de Engenharia Metalúrgica e de Materiais. Além de participar do coletivo Força Motriz, voltado para estudantes de comunidades e ocupações urbanas, ela fundou o curso André Rebouças, onde estudantes de anos mais avançados ajudam os que acabaram de ingressar a aprender Cálculo 1, uma das disciplinas que mais reprovam nas engenharias. Cria da Rocinha, ela não se sentia parte da universidade até participar de projetos como esses, que retornam para a sociedade.
“A gente não tem a mesma base de outras pessoas que entram na universidade, e para a gente é sempre dobrado. A gente não vai conseguir chegar em casa e já estudar porque alguém vai levar almoço no nosso quarto, a gente não pode dormir em qualquer horário porque em 20 minutos chega na universidade”.
— Andressa Azevedo, estudante da UFRJ
A perspectiva da permanência como desafio na pós-graduação foi abordada pelo chileno Pablo González, doutorando da área de saúde pública na ENSP/Fiocruz e representante da Associação dos Pós-Graduandos da Fiocruz (APG-RJ). Ele comentou que a própria Fiocruz já publicou uma política de apoio ao estudante, que não é cumprida. Acesso permanente à água e alimentação a baixo custo são desafios principalmente para moradores do alojamento, como ele.
A extensão universitária e a geração de renda
Iniciativas governamentais e universitárias para o fomento a empreendedores periféricos foram abordadas na mesa “Empreendedorismo como alternativa para inclusão e desenvolvimento social”. Foi mediada por Vitor Giraldo, assessor especial da Secretaria Municipal de Ciência e Tecnologia do município do Rio. Um dos órgãos mais buscados por empreendedores de pequenos negócios é o Sebrae, representado na mesa por Juliana Oliveira, coordenadora de Comunidades dentro da Gerência de Empreendedorismo Social. Ela compartilhou conhecimentos relevantes da área adquiridos pelo Sebrae em mais de 10 anos. Segundo Juliana, o perfil de “empreendedor” hoje no Rio é de uma mulher de 40 anos chefe da residência, que cria um negócio por necessidade. No ramo do empreendedorismo, acredita-se que negócios são criados por oportunidade, necessidade ou até sobrevivência. Juliana destacou que o papel do Sebrae é auxiliar para que o negócio dê certo: “A gente quer construir pontes para que o empreendedorismo seja cada vez menos por sobrevivência”.
Rita Afonso, professora da UFRJ que compõe espaços como a Incubadora de Negócios Sociais do Parque Tecnológico da UFRJ, comentou a importância de se fazer parcerias através da Extensão. Ela citou o projeto Mano a Mano, que alia a Faculdade de Administração e Ciências Contábeis (FAC) a pequenas empreendedoras, no qual elas recebem um “capital semente” para investir no negócio e têm a assessoria de estudantes. Os principais campos de atuação são a gestão simplificada das Finanças e modos de vender online. Diego Allonso, professor da Faculdade de Farmácia da UFRJ e coordenador de inteligência artificial na Inova UFRJ, que é o Núcleo de Inovação Tecnológica da instituição, também defendeu que instituições como as universidades se aliem aos pequenos negócios, inclusive visando atenuar o problema da falta de empregos na sociedade.
Juventude periférica e mudanças climáticas
Três estudantes de Geografia, da graduação e da pós, compuseram a última mesa do dia. Com o tema “Mudanças climáticas e juventudes: desafios e perspectivas da juventude periférica frente às mudanças climáticas no município do Rio de Janeiro”, foi mediada pela mestranda em Engenharia Ambiental pela UERJ Ana Carolina. A primeira a apresentar foi Samara Santos, moradora do Morro do 18 em Piedade e graduanda em Geografia pela UERJ. Ela mostrou sua pesquisa sobre a ocorrência do termo “educação ambiental” em documentos que orientam o ensino em sala de aula, com foco na Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Em suas diversas versões, a BNCC teve diferentes posicionamentos sobre a aplicação na escola do termo “meio ambiente” e outros semelhantes e, segundo Samara, na versão mais recente, a “educação ambiental” em si não é um componente curricular; recomenda-se o ensino transversal (nas diversas disciplinas) de “sustentabilidade socioambiental”. Na visão de Samara, esta ausência fragiliza a educação ambiental como algo que será aplicado como cada escola preferir.
O tema do impacto das mudanças climáticas no município foi abordado tanto por Beatriz Castro, geógrafa e pesquisadora do Laboratório do Clima da UFRJ, quanto Vinícius Bertho, graduando de Geografia pela UERJ. No âmbito das pesquisas de clima, Beatriz apresentou alguns resultados de pesquisas que correlacionam as altas temperaturas dos diferentes bairros e favelas do Rio de Janeiro aos fatores sociodemográficos, como raça predominante dos moradores e padrão construtivo das casas. Uma das pesquisas mostradas evidencia que algumas das áreas do município onde há mais incidência de calor e, também, corpos pretos, são o bairro de Campo Grande, a favela da Kelson’s na Maré e a zona portuária.
Já Vinícius Bertho apresentou pesquisas realizadas também na área de climatologia. A pesquisa “Concentração, ritmo e impactos da pluviosidade na cidade do Rio de Janeiro” mostrou que, embora o Rio de Janeiro tenha registros de fortes chuvas – e consequentes enchentes e desastres como deslizamentos – desde o século passado, a cidade não foi planejada para conter estes eventos nas áreas mais vulneráveis. Ele ainda mostrou que os bairros onde a população mais sofre com as chuvas, perdendo suas casas, bens materiais e tendo, até, eventos de morte nas enchentes, não são exatamente onde mais chove. Um exemplo é que a favela da Cidade de Deus tem um dos menores índices pluviométricos da cidade (menor volume de chuva), mas é um dos locais onde mais acontecem tragédias. Ele provou, assim, que não é o volume de chuva que vai causar os impactos, mas outros fatores como a falta de drenagem para a água, a inclinação da favela, a estrutura frágil das casas, entre outros.
O tema despertou grande interesse no público, levantando perguntas e debates. Assim foi finalizado o primeiro dia da 3ª Jornada Favelades Universitáries, que teve continuidade nos dias seguintes na FEBF/UERJ e no Museu da Vida da Fiocruz.