A favela ocupa a Câmara: homenagem reúne museus sociais do Rio de Janeiro

Memória, Notícias

Por Carolina Vaz

Foto de capa: Ângelo Alves

“Eu já estive nessa Casa por muitas vezes. Já sentei lá em cima, já sentei aí, já fui ali pra falar… sempre lutando por direitos. Na resistência. Reivindicando. É a primeira vez que eu entro nesse espaço para receber uma homenagem, um reconhecimento”. A frase é de Sandra Maria de Souza, militante da luta pela moradia, e foi dita no último dia 24 de abril na Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro. O motivo da fala é que Sandra estava representando o Museu das Remoções, museu criado pela população da Vila Autódromo após o processo de remoção pela prefeitura que seus moradores sofreram. A ocasião da fala foi a homenagem à Rede de Museologia Social (REMUS) promovida pelo vereador Edson Santos (PT).

Mais de 10 museus estiveram representados na homenagem na Câmara Municipal. Na mesa de honra estavam, além do vereador, representantes do Museu das Remoções, Museu Vivo de São Bento, Museu do Horto, Museu Casa Bumba Meu Boi e Museu da Maré, e ainda o diretor do Museu da República Mário Chagas. Na plenária, outros museus sociais, membros da Rede de Museologia, marcaram presença e foram homenageados.

Mesa de Honra foi composta por representantes dos museus e o vereador Edson Santos. Foto: Ângelo Alves.
Na luta é que a gente se encontra

A Rede de Museologia Social do Rio de Janeiro reúne diversos museus sociais, diferentes em suas origens e localizações, mas que têm entre si a semelhança de representar uma luta. Há os que lutam pela moradia, ou para preservar e renovar a memória de um povo ou de um herói, ou para manter vivo um símbolo da cultura popular. Um dos primeiros, nascido em 2006, foi o Museu da Maré. Este foi a consequência de um processo de preservação da memória que já existia: a Rede Memória do CEASM. Foi há 17 anos que a Casa de Cultura que o CEASM geria se tornou o Museu da Maré, o primeiro museu de favela do Rio criado por seus moradores. Segundo Luiz Antônio de Oliveira, um dos objetivos do museu social é tornar visível para toda a sociedade a importância da história e da vivência dos moradores de favelas e periferias.

Luiz Antônio de Oliveira, diretor do Museu da Maré. Foto: Ângelo Alves.

A ressignificação do território é fundamental, porque só assim a gente pode continuar nesse processo de romper com a estigmatização junto aos moradores de favela. E fazer também com que não só os moradores saibam disso, é preciso que a cidade saiba disso, que o país saiba disso, que quem mora na favela é um cidadão como qualquer outro.

Luiz Antônio de Oliveira, diretor do Museu da Maré

Um museu social não tem o objetivo de ser um “museu de gueto”, como enfatizou também Antônio Carlos Firmino, representante do Museu Sankofa Memória e História da Rocinha. O museu social, em contraponto aos museus que contam a História “oficial” da cidade, do estado e do país, pode ser a ferramenta para a apresentação da História não oficial, contra a invisibilidade dos moradores: “Todos esses museus buscam trabalhar contra o apagamento histórico, pelo direito às memórias históricas, à moradia. Não são só os museus convencionais, que falam de quem é colonizador, nós temos o direito de falar de nós mesmos”. E ao falar de si mesmo, o Museu será um espaço – físico ou virtual – para que toda a sociedade conheça a realidade e as memórias das populações periféricas.

O plenário foi composto por demais participantes dos museus sociais. Foto: Ângelo Alves.

Essa preservação da memória pode ter como objetivo mais do que manter a dignidade: manter, também, os moradores onde lhes é de direito viver, livres das investidas de remoções do Estado. É o caso do Museu das Remoções, criado pela população da Vila Autódromo, e do Museu do Horto, que foi representado por Emerson de Souza. Carregando uma história que carrega mais de 40 anos lutando contra a remoção, o grupo encontrou na REMUS o acolhimento de suas reivindicações: “Era um lugar onde pessoas lutavam achando que estavam sozinhas, nessa luta pelo direito à moradia, contra a violência do Estado, contra essa violência que todas essas famílias passaram e passam. Mas aqui dentro da Rede de Museologia Social nós encontramos um alento”.

Sandra Maria de Souza se emocionou ao estar na Câmara, pela 1ª vez, sendo reconhecida pela sua luta por moradia. Foto: Ângelo Alves.
A Cultura está de volta – como política pública

O vereador Edson Santos, em sua fala, destacou o momento favorável para os museus sociais, com perspectiva de retorno de políticas públicas para os mesmos através do Ministério da Cultura, que passou cerca de 4 anos extinto como Ministério, e foi refundado em janeiro deste ano. Ele lembrou que foi anteriormente a 2016 que diversos museus sociais foram beneficiados por políticas como Cultura Viva, Pontos de Cultura e Pontos de Memória, que agora podem ter novas edições. Para ele, a política cultural que guia o país hoje envolve valorizar as identidades, gerar trabalho e renda e fomentar a participação política.

A política cultural que defendemos, baseada nas experiências dos primeiros governos Lula e Dilma, é voltada para os direitos culturais e pensada através das três dimensões. Simbólica, das artes e patrimônio e formas de expressão de identidade cultural. Econômica, na geração de trabalho e renda, as vocações regionais no desenvolvimento pleno tendo a cultura como um dos pilares. E cidadã, o próprio direito à cultura que é um direito que gera outros, como de participar de decisões da política e investimentos

Edson Santos, vereador

O museólogo Mário Chagas, citado numerosas vezes pelos presentes como a pessoa que motivou um coletivo a criar um Museu, também prestou sua homenagem à museologia social. Para ele, a museologia social tem como centro a vida, é a museologia do afeto e ao mesmo tempo uma ferramenta de luta, comprometida com a defesa dos direitos humanos e com a democracia. Diferentemente de outros usos da museologia, que contam as histórias dos colonizadores, a social deve ser libertadora: “A memória pode servir para aprisionar, mas a memória pode servir para libertar. (…) Muitos utilizam a memória para disciplinar, nós usamos para libertar. Nosso compromisso é uma memória que inventa futuros”.

Mário Chagas, corresponsável pela criação de vários museus, defendeu a museologia em prol da liberdade. Foto: Ângelo Alves.

O último momento da cerimônia foi a entrega de moções aos museus que compõem a rede: Museu Almirante Negro/Marinheiro João Cândido; Museu da Umbanda; Museu de Arte e Cultura Urbana da Baixada Fluminense; Museu de Favela; Museu de Memórias da Comunidade Indiana; Museu Memorial Iyá Davina; Museu Sankofa História e Memória da Rocinha; Museu Vivo da Capoeira; Museu Vivo de Areia Branca; Museu Vivo de São Bento; Ecomuseu Rural de Barra Alegre. Além dos museus que estiveram na mesa de honra.

A foto tirada após a cerimônia, na escadaria interna da Câmara Municipal, a Casa legislativa da cidade do Rio de Janeiro, mostra sua ocupação, desta vez com glória, por dezenas de pessoas que em tantos momentos tiveram que lutar contra a prefeitura, contra leis municipais e contra demais instrumentos de opressão do município, como a Polícia Civil, para garantir seus direitos.

Comentários