A Maré em horário nobre: a trajetória da atriz Bárbara Assis
Por Ana Cristina da Silva e Carolina Vaz
De repente, uma mareense na TV: no dia 12 de janeiro, muita gente se surpreendeu ao ver, na novela das nove Um Lugar ao Sol, a atriz Bárbara Assis participando de uma roda de slam. Logo começaram a chover mensagens para ela. “Eu estava fazendo outra coisa de outro trabalho e começou a vir mensagem! ‘Vem cá, é tu mesmo?’ Aí eu abri no Globoplay e vi!”.
Mas muita gente não sabe que ela não começou agora. Bárbara Assis, de 24 anos, é nascida e criada no conjunto de favelas da Maré. Com uma trajetória artística de 7 anos, Bárbara se dedica tanto à dramaturgia quanto à música. Durante esse período, a artista já participou da Mostra SESC Regional de Artes Cênicas, se apresentou no festival de teatro Entre Lugares Virtuais , lançou seu primeiro single nas plataformas digitais e, agora em janeiro, teve exibida sua participação na novela Um Lugar ao Sol, da Rede Globo.
O primeiro contato com o teatro ocorreu ainda no ensino médio, quando Bárbara participou de aulas de teatro oferecidas pelo Colégio Estadual Infante Dom Henrique, em Copacabana. Porém, a sua relação com a arte só se aprofundou em 2014 quando, aos 16 anos, passou a frequentar o Museu da Maré para os encontros semanais de uma das oficinas do projeto “Teatro do Oprimido na Maré”, onde nasceu o grupo MareMoTO. O projeto era oferecido pelo Centro de Teatro do Oprimido (CTO) que apresenta o teatro como sendo uma “ferramenta de transformação social e educacional”. Sem nunca ter deixado o MareMoTO, em 2018, Bárbara também se junta ao grupo Atiro, formado por atores da Maré, onde se envolveu com um modelo de teatro mais tradicional e apresentou então o espetáculo Corpo Minado, que foi assistido por críticos de teatro e produtores de elenco durante a Mostra SESC Regional de Artes Cênicas da Zona Norte, no ano de 2019. “Foi a primeira vez que eu entendi e vi um grupo de favela ocupando outros lugares. Achei muito interessante”, relembra Bárbara.
A moradora da favela Bento Ribeiro Dantas, que já havia cursado 2 anos de Antropologia na Universidade Federal Fluminense (UFF), decidiu se dedicar também à música, ao encontrar sentido nas poesias que escrevia quando era mais nova. Tal como conseguiu uma bolsa de estudos para a escola de teatro O Tablado, no Jardim Botânico, sua determinação também a fez conquistar uma bolsa na escola de música Villa-Lobos, no Centro do Rio de Janeiro, onde segue estudando música e se dedicando cada vez mais ao piano e à composição. “Eu vou aonde eu consigo sentir que, naquele momento, a minha arte vai estar se expressando da melhor forma”, alega a artista mareense que, em todos os seus trabalhos, busca atuar como uma “artivista” ao inserir na arte diversos assuntos sociais e políticos que são muito vistos na realidade periférica.
Em uma conversa com a artista, falamos sobre sua trajetória dentro e fora da Maré. Bárbara contou um pouco mais sobre a sua participação na novela Um Lugar ao Sol, exibida pela Rede Globo, e compartilhou os aprendizados que adquiriu com o teatro. Animada, ela também falou sobre seus planos e sua atuação no mundo da música. Confira:
O teatro acaba gerando perspectivas diferentes do lugar onde moramos. Como isso mudou a sua visão da comunidade?
Eu fui criada para sair da favela. Para ir em busca de uma “vida melhor”. E, antes do teatro, as pessoas em volta sempre reproduziam a mesma lógica de que para você ir em busca de uma vida melhor você se distancia da sua cultura, você se distancia do seu lugar. Porque a gente tem um aspecto de negação que vem muito dessa ideia do colonizador de fora. Então quando eu comecei a fazer o Teatro do Oprimido foi muito louco, porque me trouxe essa visão, fez enxergar a minha relação com o território atrelado a etnia, questão socioeconômica, sexualidade, e nesse meio ainda tinha o conflito adolescente. Eu comecei a entender o meu poder pessoal enquanto pessoa e os meus direitos. Comecei a entrar em conflito, num sentido positivo, de reflexão dentro de mim.
E como foi agora em 2021 sua experiência na novela?
Até hoje parece que minha ficha não caiu! Quando a produtora de elenco entrou em contato comigo, eu falei: “que bizarro, que doideira”. Eu ia fazer, até então, a personagem da Martina (MC Martina do Alemão). Nós participamos da gravação no mesmo dia. Eu ia fazer a slammer, mas depois trocou, e aí sim eu pensei “agora faz todo o sentido”. Porque teve muito essa questão da identidade e da personalidade de cada uma, isso foi muito interessante e eu me senti muito à vontade. Eu sempre quis participar de novela, sempre quis fazer Malhação por exemplo, só que Malhação acabou, e agora eu consigo perceber que eles estão abrindo núcleos nas novelas para as pessoas mais novas participarem, e foi numa dessas que a gente foi escalada para participar.
Com isso, eu tinha muito medo de fazer alguma personagem que eu não me identificasse. De qualquer forma, eu não ia negar porque é um trabalho, mas a gente passa muito por isso. A questão identitária é uma questão bem deprimente em relação a nós artistas porque quando você tem consciência do seu território, sua cor, sua etnia, sua classe social, fazer um personagem que reproduza qualquer estereótipo histórico ou elementos que tragam machismo e racismo, mexe com a gente. Então eu tinha muito medo disso, quando surgiu esse convite para fazer a personagem eu fiquei muito ansiosa, mas tive muito apoio dos meus amigos artistas, de repassar o texto, de ver como é.
Você se sente mais pronta para transitar em lugares em que você não está acostumada?
Sim, eu me sinto mais madura, segura, confiante. Querendo ou não, eu sei que vem de dentro, mas quando você tem reconhecimento você percebe que seu esforço valeu a pena. Contribui para a autoestima, você começa a acreditar mais, gera motivação, e isso faz toda a diferença. Ainda mais por ser preta, ser mulher, ser de favela… é como se fosse uma realidade paralela. E eu volto pra minha realidade, pro teatro de favela.
Mas se não fosse você no papel ia ser outra pessoa…
Sim, é isso. E eu achei muito interessante o lugar, que tem a ver com a minha vivência enquanto preta. Minha vivência estava ali, não foi um lugar de imposição, um papel como doméstica, babá, coisas que eu acho que não cabem mais. A gente precisa falar sobre nossa vivência, quais são nossos sonhos na TV, não ficar só reproduzindo estereótipos que alimentam a mente dos brasileiros e contribuem para como as pessoas olham pra gente. Por isso eu fiquei muito satisfeita, foi uma experiência muito incrível e eu quero fazer de novo… Foi quando eu menos esperava, mas eu espero que me abra portas.
E eu acho interessante pelas crianças, minha família, meus irmãos, meus amigos… acho que é importante a TV abrir espaço para as pessoas ocuparem e falarem de suas próprias narrativas.
Você está fazendo algum trabalho agora no teatro?
Vou entrar agora numa oficina para fazer um teste de um musical. Vou entrar em preparação e passar por testes com outros artistas que admiro. E vou lançar música esse mês. A primeira que eu lancei foi em dezembro, As Nuvens.
Dentro da música a minha pesquisa é sobre essas questões diaspóricas e infinitas possibilidades. As Nuvens foi meu primeiro single e é como uma porta de entrada, e em Dois Pretos se Amando eu falo sobre o que acontece quando duas pessoas pretas estão se amando. Duas pessoas que têm suas vivências, suas narrativas, e têm feridas, não curaram suas feridas e vão pra um relacionamento, como isso se espelha dentro de um e outro. Falar isso agora, até chegar nessa questão da emancipação, empoderamento, é importante.
Na música você pretende criar essa narrativa, com início, meio e fim?
Sim, e eu pretendo caminhar junto com como eu vejo o mundo no momento. Tem coisas que eu enxergo lá na frente, eu sei do que eu quero falar só que eu sei que antes eu preciso liberar outras coisas para construir essa narrativa, para ter vivência na música também. Na música, enquanto artista independente e solo, eu não tenho experiência ainda.