Alunos do CEJA Maré contam suas histórias de vida em livro
Entrevista por Carolina Vaz
Texto e fotos por Ana Cristina da Silva
De acordo com a Constituição Federal, a educação é um direito de todos. No entanto, apesar deste direito ter sido reconhecido em 1988 no Brasil, para muitos a educação foi de difícil acesso ou até mesmo privada por completo. Diferentes alunos do PEJA (Programa de Educação de Jovens e Adultos) comprovam isso em seus depoimentos publicados no livro “PEJA é Direito”, publicado de forma independente e idealizado pela professora Flávia Rodrigues, da turma de alfabetização do CEJA Maré e da turma de 2º segmento — que corresponde aos últimos anos do Ensino Fundamental — da Escola Municipal Alagoas, localizada em Pilares. O Centro de Educação de Jovens e Adultos (CEJA) se localiza na rua Praia de Inhaúma, próximo ao Conjunto Bento Ribeiro Dantas.
Flávia Rodrigues é formada em Letras e trabalha com EJA há 21 anos. No entanto, a vontade de criar o livro com seus alunos e alunas surge após conhecer as professoras Amanda Guerra e Marta Lima de Souza, durante o curso de aperfeiçoamento de EJA na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em 2018. “Apesar de eu já ter sido formada em Letras, na graduação eu não estudei EJA, não tive essa disciplina. E foi nesse curso que abriu mesmo a minha visão de como a gente perde literatura com as histórias dos nossos e nossas estudantes. Aí naquele dia eu já pensei ‘um dia eu vou fazer um livro com as histórias dos meus alunos’”. Flávia entrou para o CEJA Maré em 2022 e quando recebeu o apoio dos alunos da Maré e os da Escola Municipal Alagoas foi que a ideia começou a ganhar forma.
O livro, produzido em 2023, traz as narrativas dos alunos de ambas as turmas do PEJA/EJA. Segundo a professora Flávia, a turma do 2º segmento da escola em Pilares trabalhou em cima de alguns temas específicos: “Alguns temas transversais, que atravessam a sociedade e que a gente traz pra sala de aula, foram escolhidos pra compor o texto. Lá na outra escola quiseram falar de aborto, greve da educação, liberdade, luta e preconceito”, explica. Já os alunos da turma de alfabetização do CEJA Maré contaram suas próprias histórias de vida.
Estas histórias, dispostas no livro, podem surpreender o leitor de diversas maneiras. Afinal, são histórias extremamente pessoais e, em sua maioria, carregadas por lembranças de uma vida difícil. Porém, diferente do que se imagina, estas narrativas não surgem primeiro em folhas de papel e sim em uma roda de conversa registrada em vídeo pela professora. Todas as falas foram transcritas por Flávia e distribuídas em sala de aula para cada aluno. “Aí virou texto escrito e eles tiveram acesso ao texto oral deles pra gente começar a compreender que o que a gente fala a gente pode escrever, de forma diferente, mas dá pra escrever”, conta a professora. O processo foi fundamental para a turma, que vem se desenvolvendo na escrita.
“A gente falou muito das opressões que a classe trabalhadora sofre e que tira o direito à escola. Por que que a gente chega na EJA com essa idade, né? A gente começa a desconstruir a história de que é nossa culpa. Se não é nossa culpa, é porque aconteceu alguma coisa que nos tirou desse caminho. E aí elas e eles começaram a contar as histórias e começaram a compreender que as histórias se atravessavam. Então, se atravessavam é porque os problemas são sociais. Porque se aconteceu comigo, com ele e com ela também, então não é minha culpa”.
— Flávia Rodrigues, professora de EJA.
A Constituição Federal mostra o que queremos: que a educação é um direito de todos. No entanto, a realidade é outra para muitos, em especial as famílias periféricas e de baixa renda que passam fome e lidam desde cedo com a preocupação de prover recursos para dentro de casa, dificultando o foco nos estudos. No livro, histórias como a de Sueli, José Carlos e Maurina — alunos do CEJA Maré — possuem algo em comum: todas as três são histórias de sobrevivência. Enquanto Maurina trabalhava desde criança para conseguir um prato de comida e ajudar a mãe e os irmãos, Sueli e José Carlos chegaram a morar na rua, onde passaram fome e sofreram agressões.
Se a educação é um direito que falhou por muitas vezes no Brasil, o livro idealizado pela professora Flávia Rodrigues declara que o PEJA é um direito que, dentre muitas outras coisas, luta todos os dias para corrigir essa falha e assim mudar o futuro de quem um dia acreditou que aprender era um sonho inalcançável. Muitos dos alunos do CEJA, mesmo com a dificuldade, em algum momento se viram em escolas que, no lugar de acolher, se tornaram espaços opressores. Há relatos de pessoas que apanharam, que se sentiram humilhadas e diminuídas. Isso, somado à realidade cruel que enfrentaram, os afastou ainda mais deste direito que a eles pertence: a educação.
No entanto, durante toda a entrevista com alunos e professoras do CEJA Maré, a palavra que mais se destacou foi “família”. Todos os alunos e alunas que em algum momento deram depoimento demonstraram felicidade em voltar a estudar. Refletindo sobre o espaço da sala de aula, desde a professora até os colegas de turma, Jacinta declarou: “É igual uma família mesmo, aqui a gente fica assim… gente diferente, que a gente nunca viu, mas a gente se sente acolhida, né? Eu gostei da escola”. Para alguns alunos, como Sueli e José Carlos, foi uma surpresa o tratamento da professora com eles em sala de aula: “Chegar aqui e encontrar uma professora que abraça todo mundo… é muito difícil porque eu já estudei no Jardim América, eu sei como é que é (…) Eu apanhei muito dentro da escola. E você chegar onde você chegou, voltar tudo de novo, voltar pra escola, e a professora te abraçar não só como aluno, mas como uma família… eu me senti em casa”, conta Sueli da Silva.
“Se você chega na escola e tem menos humanização, a escola falhou. Se você chega na escola e tem uma visão mais humana do outro, do seu vizinho, do seu familiar, do colega da escola, uma visão menos cruel, aí realmente a escola está fazendo o seu papel. Sueli já deu o depoimento dela e a lembrança que eles têm da escola é de ser muito violenta, tão violenta quanto o mundo lá fora. E aí eles começam a entender que a escola é um reflexo da sociedade, então a gente tem que sempre estar atenta pra não cair na armadilha de ser cruel numa escola”.
— Flávia Rodrigues, professora de EJA.
O livro pode ser visto de diversas formas, seja como uma reflexão acerca da sociedade, seja como uma celebração. Isso porque, mesmo contando histórias trágicas, estes alunos que antes do CEJA não sabiam ler e nem escrever se sentem felizes com todo o aprendizado que vêm adquirindo. “Eu tenho orgulho, eu acho bonito ir na rua e ler alguma coisa que eu não sabia ler, eu parar e falar: tá escrito assim. Igual o nome das pessoas que passa na televisão, eu consigo ler agora. Cid Moreira, Cláudia Raia, eu leio tudo! Antigamente, como eu ia saber o que estava escrito ali na televisão?”, conta o aluno José Carlos.
O livro “PEJA é Direito!” se tornou real graças a uma ajuda coletiva. Com uma arrecadação em dinheiro, feita entre apoiadores da EJA, foi possível realizar uma impressão caseira para se produzir 100 exemplares, distribuídos entre os alunos. Com apoio do Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação do Rio de Janeiro (SEPE) foram impressos outros 50 exemplares. Apesar de já existir tanto uma demanda quanto a vontade de se produzir uma segunda edição do livro, o apoio da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro faz falta no que diz respeito aos custos de confecção e impressão do livro. Porém, desistir não é uma opção e Flávia já planeja trabalhar outros textos com os novos estudantes do PEJA/EJA.
Acesse o livro completo clicando aqui.