Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (CEASM): sua história de (re)existência e a construção de uma memória de lutas

Geral

Colegiado do CEASM

Agosto é o mês em que o Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (CEASM) completa 23 anos de existência no território. Foram anos de muitas lutas, conquistas e desafios e que pretendemos ao longo dessas próximas semanas contar um pouco dessas memórias para que, de alguma forma, essas experiências jamais se percam entre nós. Queremos com isso que os moradores da Maré saibam por meio do seu próprio povo que é possível combater todo tipo de desigualdade, valorizando a nossa própria história e a nossa capacidade de resistir; que é possível intervir positivamente na sociedade da qual fazemos parte, através da nossa organização; e, o mais importante, que as pessoas que vivem aqui na favela possam compreender cada vez mais que o “ser favelado” não se resume ao olhar daqueles que sempre quiseram nos eliminar. Ao contrário, nós somos uma grande força. Aqueles que resistem. Aqueles que não desistem. Aqueles que constroem em meio ao nada, e aqueles que vivem com fé, esperança e uma incessante vontade de mudar. O CEASM, nas suas mais de duas décadas de existência, buscou exatamente valorizar toda essa potencialidade. Construiu projetos sociais, investiu na produção de cultura e, principalmente, sempre apostou na educação como a sua principal bandeira de luta e um dos caminhos essenciais para se construir uma sociedade mais justa.

Origem: universitários mareenses e a construção de um sonho

Podemos dizer então que o CEASM nasceu de um incômodo (ou vários). Inquietações que balançaram a consciência de um grupo de jovens moradores e ex-moradores da Maré e os instigou a colocar em prática os seus desejos por algum tipo de mudança relevante. Essa primeira parte da história do CEASM é recheada, portanto, de muitos sonhos, projetos, vontade de fazer a diferença no território da Maré. E nada mais aglutinador do que um início que poderia ser direcionado a um projeto educacional. Era um começo que fazia todo o sentido. As trajetórias sociais que ali estavam reunidas, todas elas tinham “um quê” de excepcionalidade. Eram jovens com origem humilde e que, apesar de todas as dificuldades da vida, por algum motivo, conseguiram romper as barreiras da segregação. Alcançaram o sucesso escolar até o ensino superior, e tiveram suas vidas profissionais estabilizadas. Nesse sentido, era preciso compreender as particularidades desse grupo. Entender os motivos da enorme desigualdade educacional em espaços de favela e, a partir daí, traçar um plano de intervenção inicial que buscasse romper o status quo e construir no coração dos moradores da Maré a esperança de que era possível sim acabar com acessos privilegiados a direitos que pertencem a todos.

CPV: o primeiro projeto

O que seria então mais instigante do que inaugurar o CEASM com um pré-vestibular comunitário que tinha como proposta primordial contribuir para a democratização da Universidade Pública? Assim foi o nosso começo e, diga-se de passagem, um começo bastante inspirador. Não demorou muito tempo para que partes expressivas de uma juventude da Maré, que procurava o CEASM, compartilhasse da ideia de que o ensino superior não deveria ser algo completamente distante. Gradativamente, ao longo do tempo, dezenas e centenas de jovens amplificaram essa ideia em nossas turmas do projeto “Curso Pré-Vestibular Comunitário da Maré” (CPV Maré) e, no final das contas, a fronteira que separava e ainda separa a favela da Universidade já não parecia tão intransponível assim.

O sucesso inicial do CEASM foi, nessa perspectiva, avassalador. Rapidamente, (em poucos anos) outros projetos no campo da educação, comunicação, cultura e memória ganharam viabilidade e tudo aquilo que havia começado tímido nos fundos de uma igreja católica, de repente, já tinha uma sede própria, muito bem estabelecida e estruturada no alto do Morro do Timbau. Essa foi uma fase da história do CEASM de significativa expansão. A cada projeto social executado com relativo sucesso, mais se consolidava a captação de recursos públicos e empresariais para se pensar mais projetos que, de alguma forma, pudessem atender os variados públicos residentes no Conjunto de favelas da Maré.

O CEASM construiu, nesse sentido, uma estrutura administrativa relativamente complexa considerando que se tratava apenas de uma organização não governamental. Uma instituição baseada em redes de funcionamento, com campos de atuação específicos e que com pouco tempo de existência conquistou prêmios nacionais e internacionais e o reconhecimento social por parte dos diferentes órgãos públicos e privados espalhados por todo o país. Nada que de fato fosse exatamente uma surpresa, considerando uma iniciativa que fundou um jornal comunitário com 20 mil exemplares impressos para distribuição na Maré e a criação de um Museu Comunitário, local renomado mundialmente nos círculos dos movimentos sociais e acadêmicos. O sentimento de admiração era inegável. Não havia quem não se encantasse com o espaço do CEASM quando adentrava no local e tomava conhecimento da força e do alcance dos seus projetos. Tudo externamente parecia perfeito, sem maiores percalços e com uma solidez estrutural que, aos olhos de quem via de fora, tinha um caráter inquebrantável. Mas nada dessa estabilidade era totalmente verdade.

Os desafios da gestão

O rápido crescimento do CEASM e a necessidade de se administrar uma enorme quantidade de projetos criados trouxeram consigo uma série de questionamentos internos que, no final das contas, mergulhou a instituição numa crise tão inconciliável que o resultado final foi a sua separação. Dentre os muitos questionamentos, destacamos: Quem exercia de fato o controle de tantos projetos? A administração das inúmeras iniciativas sociais era internamente democrática? Quem representava o coletivo da instituição para fora dela? No interior de cada projeto, a alocação dos recursos seguia o critério da equidade?

Conforme o tempo ia passando, ficava cada vez mais evidente que a centralização do poder administrativo no CEASM não estava mais dando conta de resolver os problemas internos que iam surgindo dia após dia na instituição. Seus fundadores e diretores claramente não estavam mais alinhados aos mesmos objetivos que nortearam a criação do projeto. Após uma tentativa fracassada de democratização interna, por meio da formação de um colegiado de coordenadores de projetos, a crise institucional se resolveu, enfim, no ano de 2007, com a separação definitiva dos diretores e fundadores do CEASM e a criação, por parte daqueles que saíram, de uma nova organização social denominada Redes de Desenvolvimento da Maré, que passou a ocupar o prédio reformado anos antes pelo CEASM na comunidade de Nova Holanda.

Dentro desse contexto, podemos dizer então que o ano de 2007 acabou sendo um novo ano de (re)fundação do CEASM. O número de projetos da instituição diminuiu gradativamente; a manutenção do espaço passou a se caracterizar por grandes dificuldades. Mas o que é de fato essencial foi que, a partir do ano de 2007, o CEASM realmente precisou ter que se reinventar diante da nova realidade da organização. Não seria justo abandonar todo um trabalho de relevância construído junto à população da Maré e foi justamente uma geração que já havia sido formada pelo CEASM que, nesses momentos de dificuldades, sustentou a instituição, assumindo responsabilidades e conferindo um caráter maior de militância às ações que continuaram a ser realizadas.

No entanto, nessa nova fase da história do CEASM, não foi apenas a preocupação com a nova estrutura institucional que passou a fazer parte do cotidiano dos seus membros. O fato é que os fundadores que optaram por sair e criar uma nova organização nunca concordaram com a permanência do nome CEASM e, desde então, adotaram como estratégia política (no mínimo controversa) o apagamento de suas próprias histórias na instituição e a negação explícita da existência do CEASM no território da Maré. É curioso que na página virtual do Redes de Desenvolvimento da Maré a história contada de sua fundação faça referência ao ano de surgimento do CEASM sem, no entanto, mencioná-lo na construção dessa narrativa. Diz um trecho do site:

“O processo que gerou a criação da Redes da Maré começou em 1997, a partir da iniciativa de moradores e ex-moradores oriundos de algumas das 16 favelas que formam a Maré e de outras partes da cidade do Rio de Janeiro (…) Em 2007, acontece a formalização da instituição com esta denominação de ‘Redes da Maré’, a partir do entendimento de que o exercício da cidadania dos moradores na cidade deve estar sustentado em um projeto abrangente e processual (…)”. (Fonte: site do Redes de Desenvolvimento da Maré).

Ora, dentro da apresentação desse “mito fundador”, tudo então teria se iniciado no ano de 1997, mas apenas se formalizado no ano de 2007. O vácuo histórico entre uma data e outra, na verdade, não se constitui em objeto de interesse público na elaboração dessa narrativa, na medida em que mencioná-lo seria reconhecer a existência de um passado que se quer negar. A grande questão, entretanto, não tem sido apenas a negação de uma existência, mas, principalmente, a produção de um esquecimento social. A história do CEASM nos anos que se seguiram à separação tem sido, portanto, marcada por uma luta constante de reinvenção cotidiana, ao mesmo tempo em que precisa lidar também com tentativas frequentes de apagamento e apropriação indevida da sua trajetória.

É importante fazermos esse registro como um capítulo importante da nossa história, justamente para deixar explícito que, por mais que se tente produzir um esquecimento social em relação ao CEASM, não existe força capaz de suplantar uma história de 23 anos de luta no território. O CEASM vai continuar ecoando através de cada trajetória que se constituiu nesse espaço. Através de pessoas, por exemplo, como Marielle Franco, Soraia Denise, e Denise Rocha. Vidas excepcionais que ajudaram a alçar o CEASM ao lugar de excelência em que se encontra, ainda nos dias de hoje. Esperamos que as histórias e memórias vividas e construídas nessa instituição continuem nos inspirando! Vida longa ao CEASM!!!

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