Cineasta da Maré, Lorran Dias lança filme no Festival do Rio

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Entrevistas: Ana Cristina da Silva e Carolina Vaz

Texto: Carolina Vaz

Em janeiro de 2020, o município do Rio se viu diante de uma crise hídrica: a crise da geosmina, substância presente em excesso na água, que comprometia sua qualidade. A surrealidade do fato inspirou uma história de fantasia que enreda o filme “Entre a Colônia e as Estrelas”, do cineasta mareense Lorran Dias. A obra estreou no Festival do Rio, principal festival de cinema da cidade, no dia 11 de outubro, e será apresentada novamente no sábado (22) no Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul.

A fantasia como expressão do impossível

O filme se passa na Colônia Juliano Moreira, uma parte do bairro da Taquara destinada, há mais de 100 anos, ao tratamento psiquiátrico de pessoas consideradas doentes mentais. Uma das moradoras da Colônia, no filme, é a protagonista Estelar, funcionária do hospital psiquiátrico, que no meio da crise hídrica recebe, para morar em sua casa, o irmão mais novo Kalil, um homem trans cuja identidade de gênero ela não aceita completamente. No filme, o consumo da água contaminada causa transformações nas pessoas, e Estelar rapidamente se vê perdendo as mesmas, o que a leva a valorizá-las e rever suas posições pessoais que são, também, obstáculos ao afeto.

A protagonista Estelar mora e trabalha na Colônia Juliano Moreira, Zona Oeste do Rio. Foto: divulgação.

“Entre a Colônia e as Estrelas” é a segunda obra da Trilogia do Impossível, de Lorran Dias, iniciada com Perpétuo (2018). Nos filmes, o “impossível”, os elementos fantasiosos, são reflexos dos vários impossíveis e surreais de sua vida e sua visão de mundo. “Muitas vezes, fazer cinema enquanto um jovem que vem da periferia parecia impossível (…) E eu percebo que muitas pessoas que eu chamo para participarem comigo são pessoas que também lidaram com o impossível da sua maneira. Seja por questões de classe, de raça, de gênero… eu acredito que diversas populações que são afetadas pela desigualdade histórica têm um certo aspecto nas suas narrativas que parece tencionar transformações de mundo para que o seu mundo seja possível”, ele explica.

Ao mesmo tempo, a escolha por uma protagonista de certa forma conservadora, deslocada do círculo de pessoas com as quais o cineasta convive e se identifica, é uma forma de conversar com um público maior e mostrar que a mudança pode acontecer. “Eu queria fazer uma personagem que não é do meu círculo social, uma pessoa da qual eu discordo. Porque se eu consigo construir um filme em que a personagem se transforma, o espectador que talvez concorda com ela também pode encontrar uma oportunidade de se transformar”.

A cabana que serve como portal é um dos elementos fantásticos do filme. Foto: divulgação.

Outro destaque do filme é a trilha sonora que ambienta um clima de suspense em quase toda a obra. É assinada por Pode Ser Desligado, uma trilhista que também trabalhou em Perpétuo. Apaixonado por trilha sonora original de filmes, Lorran fez questão que a mesma fosse construída antes das gravações, sendo utilizada como música ambiente ao longo das gravações ou até mesmo tocada em fones de ouvido discretos nas atrizes e atores. Em breve o álbum será lançado no streaming Spotify.

Biografia e influência na carreira

Lorran Dias tem 28 anos e mora no Conjunto Esperança, na Maré. Nascido no bairro, morou na Vila do João até os 6 anos de idade, depois morou dos 7 aos 19 em Nova Iguaçu, onde se passa o primeiro filme da trilogia, Perpétuo. Há 10 anos ele começou a se interessar por cinema, cursando a Escola Livre de Cinema, em Nova Iguaçu. Lorran já era apaixonado pelo cinema de fantasia e animações japonesas. Mais tarde, ingressou na Escola de Comunicação da UFRJ, e trocou a primeira escolha, do jornalismo, pelo cinema.

“No meio do processo [da graduação] eu me apaixonei pelo cinema brasileiro e comecei a querer fazer minhas próprias ficções. Veio um pouco desse múltiplo estímulo de várias narrativas que acontecem ao meu redor, que foram me incentivando, me motivando e me comovendo a fazer cinema. Sejam narrativas de deslocamento, narrativas contra hegemônicas mas principalmente narrativas que se interessem pelo enfrentamento do impossível. Esse impossível como um limite colonial criado para várias populações do Brasil”.

Lorran Dias

Um dos trabalhos que realizou de lá para cá foi na Colônia Juliano Moreira, mais especificamente no Museu Bispo do Rosário, onde digitalizava fotos e vídeos do arquivo local, como por exemplo imagens dos pacientes e encontros de psiquiatria que aconteciam. Trechos desses vídeos, dos anos 80 e 90, aparecem em seu filme. Mas essa experiência o levou a querer fazer um filme naquele contexto territorial mas que não fosse sobre loucura. “Eu decidi apenas usar imagens da paisagem, sem pessoas, e criar essa relação temporal de modo que convidar as pessoas daquele lugar pudesse ser não sobre loucura mas, ao mesmo tempo, questionar certas razões. Razões essas que muitas das vezes estão vinculadas ao conservadorismo, e que muitas das vezes criam conflitos internos a diversas populações do Brasil”. Alguns dos personagens presentes nos filmes são, de fato, pessoas que ele conheceu lá em 2018: usuários do serviço de saúde mental – e portanto também artistas visuais – ou funcionários da instituição. Mas, no filme, estão em papéis diferentes.

Lorran Dias (ao centro) com as atrizes Sol Miranda (de branco) e Timbuca Hai (de verde). Foto: Ana Cristina da Silva.

Além de Perpétuo (2018) e Entre a Colônia e as Estrelas (2022), Lorran também já dirigu Novo Rio (2021), Usina-Desejo Contra a Indústria do Medo (2021) e outras obras. É, também, idealizador da TV Coragem, um projeto experimental de televisão surgido na pandemia, patrocinado pelo Instituto Moreira Salles, que apresenta novos formatos de produção, formação e distribuição audiovisual, focado principalmente em narrativas contra hegemônicas.

Lançamento no Encontro de Cinema Negro

A próxima oportunidade de assistir “Entre a Colônia e as Estrelas” é no Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul, no sábado (22), às 15h30 no Cine Odeon, Cinelândia. A obra faz parte da sessão “Sonhos, distopias e experimentações”. Os ingressos para assistir aos filmes podem ser retirados até 15 minutos antes de cada sessão, diretamente na bilheteria.

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