Cozinha da Frente Maré é oficializada como Cozinha Comunitária Carioca
Por Carolina Vaz
Foto de capa: Ana Cristina da Silva
Após cerca de três anos em funcionamento, a cozinha solidária executada pela Frente de Mobilização da Maré, a Frente Maré, foi oficializada como uma Cozinha Comunitária Carioca na última quarta-feira (26). O evento de inauguração contou com a presença de autoridades e funcionários da prefeitura do Rio, como a deputada federal Laura Carneiro e o secretário de Trabalho e Renda Everton Gomes, além de toda a equipe da Frente Maré e a população do entorno do Salsa e Merengue que se beneficia das quentinhas doadas diariamente.
33 mil quentinhas e contando
A cozinha da Frente Maré já é uma Cozinha Comunitária Carioca, vinculada à prefeitura, há seis meses. Todo o processo de vinculação se deu após a equipe, de 6 pessoas, realizar treinamentos referentes ao correto preparo, armazenamento e distribuição dos alimentos, além de outras etapas burocráticas. Foi em 27 de dezembro que a Cozinha começou a distribuir, de segunda a sexta-feira, 280 quentinhas por dia, pagas pela Secretaria de Trabalho e Renda do município.
Agora, a cozinha Frente Maré é uma das 11 cozinhas comunitárias do “Lote 10”, região da cidade que concentra alguns bairros de Centro e Zona Norte, e que contam com uma coordenadora, a nutricionista Laura Stellet, e uma assistente social, Suzana Sena. Uma das funções de Laura Stellet é definir o cardápio semanal para todas as cozinhas comunitárias do município, que são 25. Todo dia a quentinha tem: arroz, feijão, guarnição (legumes), o “prato principal” (carne, frango ou peixe, mais vísceras) e, de sobremesa, uma fruta da estação. Cada refeição tem 560 gramas, é distribuída apenas no almoço e a recomendação é consumir em até duas horas. Outras cozinhas comunitárias já existem há 2 anos, e segundo Laura o programa como um todo tornou possível identificar a melhora na saúde dos beneficiários: ” família que tinha baixo peso tem ganhado peso com essa alimentação saudável, e as famílias com hipertensão, com diabetes têm regularizado as suas taxas laboratoriais”.
O critério da vulnerabilidade alimentar
Segundo a assistente social Suzana Sena, podem se cadastrar para retirar as quentinhas pessoas em vulnerabilidade alimentar. No caso de uma cozinha que já existia antes da parceria, como é o caso da Frente, foi realizada uma análise da situação alimentar de cada família que retirava alimento no local e, assim, criou-se uma lista de cadastrados. A equipe da Secretaria de Trabalho e Renda, então, realiza uma avaliação mensal da situação das famílias para fazer uma possível troca de listagem, inclusive porque acontece a “demanda espontânea”: pessoas que chegam para pedir inclusão no cadastro e elas avaliam se é possível ou não A lista se mantém, então, com 280 quentinhas por dia, sendo que para cada família o número é proporcional à quantidade de pessoas na casa; uma pessoa pode buscar uma quentinha, se morar sozinha, ou três por exemplo, se morar com os pais, filhos, etc.
Suzane explicou, também, que a equipe da prefeitura mantém contato com equipamentos de saúde e assistência social local, como o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) e as unidades de saúde, como os CMS e Clínica da Família. Assim, conseguem ter um controle melhor das condições de saúde de cada beneficiário, e pelo mesmo motivo é importante que as pessoas morem perto da Cozinha: porque poderão ir em dois momentos do dia (de manhã para pegar senha e às 12h para buscar as refeições) e porque a equipe consegue acompanhar sua saúde nas unidades mais próximas. Nesta cozinha, os beneficiários são principalmente do Salsa e Merengue, Vila do João, Conjunto Esperança e Vila do Pinheiro. Ela destacou, ainda, que o critério de vulnerabilidade alimentar não necessariamente está ligado à renda da família.
“A gente conseguiu verificar que a vulnerabilidade alimentar vai muito além do valor financeiro que aquela família recebe. Por eXemplo, a gente tem idosos que têm uma aposentadoria, porém moram sozinhos, não têm condições de estar indo em mercado, fazer compra de frutas e verduras, cozinhar, então eles acabavam não fazendo todas as refeições, ou tinha refeições que não eram nutritivas”. – Suzana Sena, nutricionista
Uma das beneficiárias, que vem buscando sua refeição todos os dias, é a Maria do Socorro Melo e Silva, de 76 anos. Moradora da Vila do João, ela se viu na necessidade de buscar esse alimento quando o INPS cortou uma de suas rendas. Todos os dias ela vai à Frente de manhã, buscar a senha, para às 12h levar para casa duas quentinhas: uma para si e outra para o neto, de 19 anos. Cada refeição pesa 560 gramas, e eles conseguem até dividir com mais alguém que esteja em casa. Ela mostrou satisfação com o projeto: “A gente se alimenta melhor, porque é por nutricionista. Não tem muito sal, é controlado, gordura também… tudo aí é controlado. Tem gente que tem diabetes e tudo, então é controlado, eles sabem das coisas”.
Três anos de Cozinha da Frente
A Frente de Mobilização da Maré foi criada em 2020, unindo diversas instituições e coletivos, incluindo o CEASM, para reduzir os danos da pandemia na Maré. Começou com a produção de informação acessível para a população sobre os cuidados e prevenção de contágio, mas intensificou seu trabalho com a distribuição de cestas básicas, kits de higiene e muitos outros itens. Em 2020 conquistou sua sede própria, no Salsa e Merengue, e na metade de 2021 conseguiu recursos para a construção de sua cozinha e distribuição de refeições através da Chamada Pública para Apoio a Ações Emergenciais de Enfrentamento à Covid-19 em Favelas do Rio de Janeiro, viabilizada pela Fiocruz com recursos da ALERJ. O valor foi suficiente para construir a cozinha no térreo da sede e comprar os alimentos por cerca de seis meses. Após isso, funcionou apenas com doações “avulsas”, de projetos e pessoas que valorizavam a iniciativa.
Segundo Mateus Vieira, um dos mobilizadores da Frente Maré, foi no ano passado que se iniciou uma aproximação com a prefeitura do Rio, que já tinha o projeto das Cozinhas Cariocas, e foram cerca de seis meses fazendo cursos e adaptando o espaço para se adequar às normas da vigilância sanitária para firmar a parceria. Hoje, a prefeitura fornece a embalagem das quentinhas e o valor necessário para fazer a compra dos alimentos, que é realizada em “parcelas”: itens não perecíveis, como arroz e feijão, podem ser comprados em grande quantidade poucas vezes por mês, mas itens como legumes e carnes precisam estar mais frescos, então quase todo dia o Mateus vai fazer essa compra no Ceasa e outros comércios. Eles recebem também uma ajuda de custo para manter a equipe, que é de seis pessoas, mas não se compara a um salário. “A especialidade do coletivo é conseguir funcionar com pouca renda”, ele conta.
A equipe da Frente ainda precisa lidar com os problemas da favela, como a falta de água e luz eventualmente, e as operações policiais. As quedas de luz acontecem pouco, o que garante o funcionamento da geladeira para armazenar os alimentos, mas neste ano eles tiveram problemas com a falta de água e tiveram que resolver por conta própria: com a ajuda do pai do Mateus, instalaram uma bomba para mandar água para a caixa e sempre ter o suficiente para cozinhar. O problema maior é em dias de operação policial, quando de fato a Frente não abre nem para a distribuição de senhas, e os alimentos podem estragar. Quando, há duas semanas, passaram-se três dias seguidos com presença da polícia na favela, perdeu-se 40 kg de batata, cerca de 300 reais. Ele já criou até uma estratégia para evitar esse problema: “Em vez de comprar banana, que é uma parada que estraga, eu compro laranja ou tangerina, que demora muito mais pra estragar, ainda mais se deixar dentro da geladeira. Então até nisso tem que pensar”.
A Cozinha como porta de entrada
Foi por volta das 12h30, com a presença de muitos moradores que foram buscar a quentinha, que se iniciou a solenidade de inauguração da Cozinha. Na data, faltando três meses para as eleições municipais, vieram fazer falas a deputada federal Laura Carneiro, o pré-candidato a vereador Gilberto Palmares e ainda o Secretário de Trabalho e Renda, Everton Gomes. A primeira a falar foi Laura Carneiro, que entre janeiro de 2021 e março de 2022 foi secretária municipal de Assistência Social, e criou o projeto Prato Feito Carioca, que deu início às cozinhas comunitárias. Logo no início, estava prevista a criação de 55 cozinhas comunitárias, meta que se mantém até hoje. Segundo ela, desde o princípio a ideia foi fazer uma parceria com iniciativas locais: “A prefeitura não pode movimentar cozinheira, ter o espaço, organizar… ficaria muito mais caro e a gente teria muito menos gente. Aí a gente criou um projeto que é cooperativo. De dois grupos: a prefeitura da cidade do Rio de Janeiro e as entidades da sociedade civil”.
O secretário de Trabalho e Renda Everton Gomes também celebrou as conquistas do projeto nesses dois anos de existência: contam-se mais de 3,7 milhões de refeições distribuídas no município, e da meta de 55 cozinhas, são 12 sendo inauguradas no presente período de um mês, segundo ele. Mas a Cozinha, segundo o secretário, é apenas a porta de entrada para conectar prefeitura e município, pois a Secretaria pretende utilizá-las para mais ações.
“A gente quer dar o alimento mas quer ensinar vocês a pescar também. Para isso, hoje o programa que foi criado lá na (Secretaria de) Assistência Social também é um programa de trabalho e de renda. Então aqui, além das refeições, vocês vão ter acesso também às políticas de trabalho. O nosso banco de oportunidades vai vir aqui, colocar as vagas de emprego que estão disponíveis da prefeitura para vocês, e a gente vai trazer também todos os cursos de qualificação profissional para aquele que hoje está desempregado para poder buscar a tão sonhada vaga de emprego”. – Everton Gomes, secretário de Trabalho e Renda
Ao final das falas, foi exibida a placa que oficializa a cozinha da Frente Maré como uma Cozinha Comunitária Carioca, e iniciou-se a distribuição das quentinhas.