Da Escravidão aos Entregadores por Aplicativos – Avanços ou roupa velha em corpos novos?

Geral, Opinião

Por Lourenço Cezar

Professor de Geografia e Mestre em Educação

Pouco mais de um ano após a greve feita por motoristas de Uber e 99 no Brasil por melhores condições de trabalho, presenciamos agora jovens trabalhadores urbanos promoverem o mesmo tipo de ato. No dia 1º de julho, pela manhã, cerca de 200 entregadores por aplicativos em São Paulo fizeram uma paralisação que fez muito barulho nas redes sociais e mobilizou um grupo significativo de internautas. Os responsáveis pelos aplicativos, por sua vez, alegam não estar lidando com funcionários e sim empreendedores que possuem uma relação de prestação de serviços e não de empregado x empregador. Para complicar ainda mais essa relação, os aplicativos, assim como o dinheiro no mundo globalizado, não são obrigados a ter uma sede nas praças onde seus aplicativos avolumam seus lucros.

Mas o que tem de semelhante nesses dois movimentos que possuem quase os mesmos interlocutores (99, Delivery Center, James, iFood, Loggi, Uber e Rappi) como alvos de suas reações?

  Motoristas de Aplicativos em 2019 Entregadores de Aplicativos em 2020
  • Aumento nas tarifas para os passageiros;
  • Redução da taxa cobrada pela Uber, que varia entre 25 e 40% das corridas;
  • Informar o destino final do passageiro para o motorista antes do aceite das corridas;
  • Locais regulamentados para estacionar.
  • Reajuste de preços: os entregadores recebem entre R$ 4,50 e R$ 7,50, valor que varia por aplicativo e distância percorrida –mais R$ 0,50 a R$ 1 por quilômetro rodado;
  • Reajuste anual: com um reajuste anual programado para o serviço e negociação direta sobre tabela de preços;
  • Fim de bloqueios indevidos: entregadores questionam a política de bloqueio onde manifestantes envolvidos na paralização estariam sendo punidos por isso;
  • Entrega de EPIs: pedem equipamentos de proteção por conta da pandemia, mas empresas alegam que já investiram mais de R$ 25 milhões;
  • Apoio contra acidentes: representantes das empresas apontam que isso já ocorre;
  • Programa de pontos: alguns entregadores questionam sistemas que fazem ranking de entregadores, sistema parecido com o de motoristas de aplicativos, que para acumularem e manterem os pontos são obrigados a trabalhar cerca de 12h por dia nos sete dias da semana.

Classe trabalhadora brasileira assalariada: conquista de direitos

O Brasil, do início da Colonização até 1888, viveu um modelo escravocrata de trabalho, sendo os escravizados a principal força produtiva. Este modelo entrou em declínio com o avanço da tecnologia utilizada nas indústrias, principalmente inglesas, que também contavam com um poderoso exército que foi muito útil para convencer vários países, entre eles o Brasil, a abandonarem essa forma de exploração humana. Todavia, não foram as questões humanitárias que motivaram a Inglaterra, mas sim a necessidade de ter consumidores para seus produtos, afinal de contas escravos não ganham dinheiro para terem acesso ao consumo. Mesmo o fato de terem se esforçado pelo fim da escravidão nas colônias não fez com que os países europeus tivessem uma relação, no mínimo, civilizada com os operários em seus países.

Em função disso, muitos trabalhadores das fábricas se organizaram em grupos que depois dariam origem aos sindicatos, atualmente em declínio, mas que foram fundamentais para o avanço nas conquistas importantíssimas do século passado. Na verdade, durante muito tempo a nossa CLT virou sinônimo de modernidade entre os países de primeiro mundo e foi bastante vigorosa na primeira metade do século passado, seja por força do liberalismo, seja por força de um mundo bipolar onde os valores socialistas assustavam países adeptos do Capital Industrial. Já no pós Segunda Guerra, vimos um avanço sem precedentes do Neoliberalismo que viria a nos colocar na situação de hoje.

Com o trabalho regido agora pelo Capital Financeiro e globalizado, que se tornou soberano com o fim do mundo bipolar, todas as conquistas trabalhistas passaram a se apresentar como um obstáculo ao avanço da elite financeira, e passaram a ser perseguidas. Nessa nova configuração da Divisão Internacional do Trabalho (DIT), países pobres passaram a disputar os empregos internacionais, onde os Tigres Asiáticos, com seus baixíssimos salários, mão de obra especializada e poucos direitos trabalhistas, tornaram-se o modelo a ser perseguido. Resumidamente, esse seria o plano de fundo que nos colocaria na atual situação.

 

Ato no Rio de Janeiro. Foto: Repórter Popular

As contradições do trabalho no século XXI

Não podemos negar que muitos países pequenos conseguiram atingir uma boa qualidade de vida nesse sistema, mas tenho dúvidas se realmente, ao menos no Brasil, conseguimos de fato conquistar direitos. Um dono de escravo no século XVI era responsável por comprar um ser humano africano para fazer os trabalhos necessários para ampliar sua riqueza. Esse homem escravizado passava a ser sua propriedade e um bem valioso. Para não perder esse “bem”, outros investimentos se faziam importantes como garantir a alimentação, saúde, segurança (para que ele não fugisse nem fosse roubado), moradia, nada diferente do tratamento que é dado aos animais de fazenda até hoje. Se formos olhar nossa constituição veremos que essa rede de proteção praticada pelo escravocrata passa a ser função do Estado regido, em tese, pela vontade desse povo agora livre.

Não sei vocês, mas nunca me senti contemplado por esse Estado em suas funções constitucionais, apesar de a cada dois anos tentar eleger alguém que faça essa lei ser cumprida. O que nos leva à questão dos nossos jovens entregadores por aplicativo. Pelo que eles estão lutando? Será que só podemos ter direito a isso? Até quando iremos colocar “roupa velha em corpos novos”? Empreendedor, autônomo, operário, camponês, trabalhador ou outras palavras similares nunca deixaram de ser a velha escravidão em corpos novos, onde os trabalhadores por aplicativos não passam de novos escravos a serviço do antigo escravocrata.

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