Da Praia do Pinto à Ocupação do MLSM: os despejos e remoções não pararam de atingir os mais pobres

Geral, Memória, Opinião

Por Carlos Gonçalves

Poucas pessoas sabem, mas a Lagoa Rodrigo de Freitas foi durante muito tempo um grande conjunto de favelas. Naquela época, a principal delas era conhecida como Praia do Pinto, a terceira maior favela plana do Rio de Janeiro. O poder público sempre teve os olhos voltados para lá, atentos principalmente ao potencial especulativo do local. Já se pensava, nos bastidores, em como transferir aquele espaço para iniciativa privada, dinâmica que se intensificou com a entrada dos militares no poder em 1964. Já ensaiada no mandato de Carlos Lacerda, a remoção da Praia do Pinto se deu durante o governo de Negrão de Lima, que ficou conhecido por produzir, em parceria com o governo federal, a maior quantidade de remoção de favelas no período da ditadura.

Inicialmente, para criar as condições políticas necessárias para a remoção daquele espaço, o governo contou com aliados importantes, entre eles a mídia. A Globo, que na época surgia como a voz ativa do regime militar, participa diretamente no convencimento da população de que a disparidade social, nítida entre a Praia do Pinto e o Leblon, deveria ser combatida pela tirania, ou melhor dizendo, pela remoção. Foi assim até que, no dia 10 de Maio de 1969, o DOPS efetua a prisão das principais lideranças populares da Praia do Pinto, e na madrugada do dia posterior surge um “inexplicável” incêndio. Vale lembrar que as favelas naquela época eram majoritariamente de barracão (tábuas de madeira), então não é preciso dizer o óbvio: as chamas se alastraram rapidamente e tomaram toda a comunidade. E os bombeiros? Você deve ter se indagado agora… bom, os bombeiros, que já demoraram a chegar ao local, alegaram que não havia água para utilizar contra aquele incêndio (mesmo com toda a água da Lagoa ao lado).

O cômico dessa história é que os sobreviventes, que saíram às pressas do incêndio, se deparam já na entrada da favela com os militares. Estavam em caminhões de onde gritavam: “entra, entra que vamos levá-los para um local seguro”. Os favelados não sabiam, mas já estavam sendo removidos. Eram os últimos sobreviventes da política irresponsável do Negrão de Lima e de Costa e Silva (governo federal), que em março daquele ano já haviam removido boa parte da Praia do Pinto. Mesmo após essa remoção, a mídia  criminalizava os moradores, dia e noite. O lema “derrubar para construir” se consolidou rapidamente. A luta para os moradores não serem criminalizados passou a ser uma das principais bandeiras dos movimentos sociais de favela, principalmente da Federação das Associações de Favelas do Estado da Guanabara (FAFEG). O discurso, por exemplo, de que as condições precárias de moradia seriam as principais responsáveis pelo incêndio da Praia do Pinto se perpetuou como “verdade”, chegando até os dias de hoje. Tal qual no passado, os movimentos por moradia continuam atualmente lutando pelo reconhecimento de políticas públicas para as camadas mais pobres da sociedade, que, sabemos, são majoritariamente negras.

O recente incêndio em São Paulo, na Ocupação do Movimento da Luta Social por Moradia (MLSM), me fez lembrar imediatamente desse fatídico momento da Praia do Pinto. Empenhada em legitimar um estigma negativo sobre os movimentos sociais de moradia, a elite paulista, junto à nada atual porta voz da intervenção militar, a Globo, entraram em uma extensa luta para que, tal como no passado, se crie um ambiente de responsabilização dos próprios atingidos pela ausência de políticas públicas. Ora, o mesmo governo que diminui os recursos sobre moradia e que precariza a educação e a saúde (PEC 55) quer agora responsabilizar terceiros por uma responsabilidade que é evidentemente sua. A audácia é tamanha que, mesmo sabendo de tais fatos, Temer decidiu ir até o local da tragédia, onde recebeu uma resposta à altura dos moradores, na base de vaias e hostilidades.

Edifício Wilton Paes de Almeida desabou no dia 1º de maio na região do Largo do Paissandu, centro da capital paulista. Foto: Agência Brasil

As “fake news”, nesse contexto, como expressão da pulverização de mentiras pelas redes sociais, entram como um elemento complementar desse processo de criminalização.  O Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), por exemplo, vem sofrendo com os reflexos disso. Foram inúmeros ataques infundados, entre eles o de Jair Bolsonaro, lamentavelmente candidato à presidência da República, que disse que “confundir o MTST com o MLSM é a mesma coisa que confundir o CV com o PCC: no final das contas é tudo crime”. A mentira que mais circulou, no entanto, foi a de um meme com a imagem de Guilherme Boulos, liderança do MTST, associada à frase “não existe almoço grátis. Nem moradia. O aluguel é R$ 400″.  Depois disso, parte dos movimentos de moradia popular iniciou uma campanha para combater essas falácias. Não bastasse lutar por moradia digna, é preciso também lutar pela verdade.

Vivemos hoje um momento de acirramento das lutas sociais. A aprovação de políticas saqueadoras, junto ao avanço das práticas fascistas, nos coloca em uma berlinda difícil e complexa de ser contornada. Nos parece que a melhor estratégia a ser adotada, mesmo que não imediatamente, passa pelo diálogo direto com o povo. A esquerda como um todo se dedicou durante anos a um trabalho muito extenso nos espaços institucionais e de privilégio, e deixou de lado o trabalho de base nas áreas faveladas e periféricas e, com isso, a importância também do protagonismo da população negra no processo. Hoje é imprescindível a disputa desses grupos. Uma disputa que traga à luz do momento outras formas de comunicar. Formas que possam criar um contra movimento ao monopólio chamado Globo. A concentração midiática no Brasil criou um círculo vicioso e cruel: o negro, pobre e periférico não vê como semelhante aquele que luta por moradia digna. Lutar por um direito não torna ninguém um agente criminoso; mas, sim, um agente transformador. Por isso, todo o apoio e solidariedade aos movimentos populares por moradia. Que possamos, de fato, contornar esse momento tirânico da nossa história.

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