Das Dores: peça do Entre Lugares expõe a violência cotidiana transformada em espetáculo
Foto de capa: Ana Cristina da Silva
Entrevistas: Ana Cristina da Silva e Carolina Vaz
Texto: Carolina Vaz
A convivência com a “violência urbana” é cotidiana para todo carioca. Todo dia uma notícia de operação policial, de “mortos e feridos”, a maioria anônimos, e de vez em quando um caso choca mais a população: o adolescente alvejado com o uniforme do município ou a jovem grávida de apenas 24 anos. Com frequência, também, este tipo de tragédia se torna “matéria prima” para um documentário, um filme, uma peça de teatro, conteúdos dirigidos por pessoas descoladas da realidade periférica, geralmente brancas e de classe média ou alta, mas supostamente empáticas por estarem trabalhando o tema. A posição em que se “dá voz aos oprimidos” pode estar mascarando o racismo, e é exatamente o que mostra a peça “Das Dores – Opereta Favelada”, realizada pelo projeto Entre Lugares Maré, com elenco formado pela encenadora Renata Tavares e por ex-alunos e alunas do projeto, atores e atrizes que vêm construindo suas carreiras. O texto original é de Marcos Bassini e compõem a equipe de direção musical Renata Tavares, Zaratustra, Rafael Rougues, Pedro Lima e Dom Yuri. O grupo está em cartaz no SESC Copacabana e terá as últimas apresentações nos dias 08, 09, 10 e 11 de agosto, às 20h30.
As camadas de racismo e o teatro sobre o teatro
Executada no mezanino do SESC Copacabana, a peça proporciona uma proximidade física entre artistas e público. O primeiro ator a falar, que representa exatamente um diretor de teatro, dirige-se ao público. A partir daí se entende que o diretor, representado por Ramires Rodrigues, está apresentando a uma pessoa a primeira versão de uma peça, como uma homenagem. A pessoa, na dramaturgia do diretor, é Maria das Dores, mãe periférica que perdeu o filho, Daudi, alvejado enquanto participava de uma manifestação. No palco, atores representam atores, atrizes representam atrizes, tudo acompanhado pela música ao vivo. Cenas dramáticas como a Das Dores perdendo o emprego porque se atrasa são levadas ao absurdo, com músicas divertidas e personagens caricatos que seriam cômicos, se não estivessem representando pessoas racistas como realmente são. Até o final, a história é transformada em espetáculo, produto de entretenimento, com os artistas visivelmente incomodados, e a plateia é testemunha e cúmplice de um conflito, ou até mais.
Artista e personagem, as contradições
A equipe do Jornal O Cidadão conversou com a encenadora e atriz Renata Tavares, e as atrizes Mila Moura e Leona Kali. Todas já muito experientes em peças que abordam a violência urbana e o racismo, como Nem Todo Filho Vinga e Dos Nossos para os Nossos. Mas desta vez elas tiveram que interpretar não somente as vítimas e resistentes desta realidade como seus causadores, como a prefeita da cidade e a patroa de Das Dores.
Para Mila Moura, o desafio está em levar para o palco esse racismo, muitas vezes mudo e sutil, e que ela mesma vivencia, mas no mesmo palco sair desse lugar e ir para o lado do opressor: “É uma loucura, porque não é a gente se apropriando de uma dramaturgia distante do que a gente vivencia e vê na favela todo dia. (…) É muito difícil, amedronta, mas é esperançoso porque estamos juntes, com esse intuito de estender o grito dessas mães, que não é ouvido”. Para Renata, a construção das cenas, por mais que sejam absurdas e forçosamente cômicas, vem do absurdo do próprio racismo cotidiano. “Se você não pensar que isso é irônico, você enlouquece. Você entra num surto afro, porque você vai enxergando tudo ao seu redor. (…) Mas a arte está aí para também mexer com os neurônios”.
“É um lugar muito incômodo você ironizar sua própria história, mas levando para o lado da luta, é importante para que a sociedade se veja nesse lugar e assuma o papel de fala”. – Leona Kali
Com este texto, com esta proposta, o elenco precisou tornar os ensaios momentos de muito acolhimento e fortalecimento, além da própria reflexão sobre a relevância de executar este trabalho, sem medo de sentir o incômodo da interpretação. Foram motivados, também, pela urgência de “desenhar” as numerosas situações de racismo e, igualmente, causar no público o desconforto ligado à espetacularização da tragédia.
A desmontagem do texto
No teatro, o texto escrito pelo(a) profissional da dramaturgia é transformado em peça teatral pela “montagem”. Neste caso, Das Dores é o título de um livro de Marcos Bassini, com este mesmo enredo, mas ele foi adaptado para ser uma peça favelada, uma peça do Entre Lugares. Renata Tavares, diretora no projeto, foi convidada a fazer esta adaptação, que acabou por ter mais questões sociais embutidas e o olhar direcionado por suas próprias vivências e do grupo de artistas que compõe o elenco. O texto Das Dores – Opereta Favelada, agora, é deles. “Nós favelizamos e empretecemos o texto”.
A participação das mães
Por mais que a peça traga uma diversidade de situações, um fato ela mantém presente: é tudo sobre uma mãe que perdeu seu filho para a violência policial. Para as atrizes, viver essa mãe sem nunca, de fato, ter vivido essa dor, foi um grande desafio, mas também uma motivação para levar essa perspectiva ao maior número de pessoas possível. Na data de estreia, em 18 de julho, foram convidadas para a apresentação mães que perderam seus filhos e filhas para a violência de Estado, o que tornou ainda mais delicado para o elenco apresentar a peça. Mas acabou mostrando que essa política de extermínio, e as demais situações de racismo no entorno dela, precisam ser denunciadas. Como comentou Renata Tavares sobre a conversa com uma delas: “Desse modo, ela me responde esse incômodo dessas mães terem que ainda falar sobre isso, mas se elas não falarem, quem é que vai falar? A gente está aqui para fazer coro a elas, alertar”.
O espetáculo segue em cartaz até o próximo domingo, 11 de agosto, com apresentações diárias de quinta-feira a domingo, sempre às 20h30. O endereço do SESC Copacabana é Rua Domingos Ferreira, número 160, Copacabana. É necessário chegar com antecedência para comprar o ingresso na bilheteria.