Documentário sobre projeto de jiu-jitsu Maré Top Team vence prêmio internacional

Esporte, Notícias

Por Carolina Vaz

Colaboração de Ana Cristina da Silva

Imagem de capa: reprodução A Fighting Chance

Na metade de 2022, várias crianças mareenses faziam vaquinha e vendiam produtos na rua para realizar um sonho: estar no campeonato mundial de jiu-jitsu em Abu Dhabi, nos Emirados Árabes Unidos, no mês de novembro. Esse sonho atravessou o Atlântico e chegou até Thais Teixeira, gerente de produção da produtora Electric Films, em Abu Dhabi, e criada na vizinhança da Maré, que “adotou” o sonho como seu. O plano de poder abrigar algumas crianças cresceu, conquistou um patrocínio de uma grande empresa de investimentos do país, viabilizou a participação na competição e, agora, tornou-se um prêmio. O documentário A Fighting Chance, da Electric Films, venceu a 14ª edição do Cannes Corporate Media & TV Awards, em primeiro lugar na categoria Melhor Documentário de Impacto Social, em final de setembro.

O documentário “A Fighting Chance – a Tale of Perseverance” (em livre tradução, “Uma chance de lutar – um conto de perseverança”) fala sobre o Maré Top Team, projeto de jiu-jitsu fundado por Douglas Gentil com sede no Parque União, e mostra as crianças e adolescentes competindo em Abu Dhabi no ano passado. Produzido majoritariamente num país com população rica e transmitido em Cannes, cidade francesa, em evento igualmente de elite, o documentário fez grande sucesso e vai ganhar, nos próximos meses, uma continuação, também da Electric Films.

Uma mensagem de esperança

Duas das crianças que aparecem no filme são os irmãos Ryan Freires, de 17 anos, e Júlia Freires, de 13. Além de terem vivido a emoção de passar uma semana em outro país, competir, conquistar medalhas e trazer essa vitória para dentro da favela, eles vivem agora a emoção de ver seus talentos serem conhecidos mundo afora. “Eu acho que o filme mostrou orgulho, porque a gente que é da favela está querendo realizar nosso sonho e mostrar que pessoas de favelas também têm sonhos”, contou Júlia. Também para Ryan o filme é importante para mostrar uma visão dos moradores que muitos de fora não acessam: “[O filme levou] uma mensagem de mostrar que não é só criminalidade, a gente tem o jiu-jitsu e o jiu-jitsu dá futuro”.

Ryan Freires e Júlia Freires, medalhistas do Maré Top Team. Foto: Carolina Vaz.

O professor Cristiano Salustino, de 34 anos, também participa do documentário. Hoje treinador do núcleo de Cordovil do Maré Top Team, ele entrou no esporte há sete anos. Na verdade, quem começou foram seus filhos de 11 e 13 anos, e ele sempre era cobrado para treinar também, até o dia em que a pressão e a oferta de um quimono o convenceram. Para Cristiano, o documentário mostra exatamente a chance de futuro que o jiu-jitsu oferta: “A visão que o filme quis passar e o que a gente quis passar também é que na comunidade, infelizmente, as crianças da periferia são muito vulneráveis às questões dos maus costumes, más presenças, de pessoas más, e pelo esporte eles conseguem estar desviando desse caminho, ser um cidadão de bem e poder alcançar coisas melhores”. Como treinador, ele vê também que as vitórias fizeram com que mais crianças se interessassem pelo projeto.

Cristiano Salustino, treinador em Cordovil, teve sua vida marcada pela entrada no jiu-jitsu há 7 anos. Foto: Carolina Vaz.

O prêmio foi uma surpresa pra muita gente, mas a gerente de produção Thais Teixeira viu o potencial assim que pisou no Centro de Treinamento do Parque União: “Eu fui conhecer o projeto e voltei de lá ‘desesperada’, porque não tem como ir lá e não ficar mexida”. Seu primeiro movimento para ajudar as crianças que iriam competir foi de buscar amigos que pudessem hospedá-las, mas em paralelo também procurou patrocínio, e deu certo. Tendo preparado um material com algumas das histórias de vidas dessas crianças, ela conseguiu. Foi o suficiente para que 34 crianças e adolescentes, e ainda os treinadores, tivessem hospedagem, alimentação e transporte por 9 dias. Para fazer as imagens da sede do projeto, ela veio com um profissional de filmagem e um de som, também da Electric Films, e eles começaram as imagens no Parque União, fazendo as demais em Abu Dhabi. Segundo Thais, depois que o documentário ficou pronto e muitos gostaram do resultado, a Electric começou a aplicar para alguns prêmios, sendo finalista e depois vencedora em Cannes. Lá, ela deixou explícito aos espectadores que a obra não era sobre esporte ou jiu-jistu, era sobre plantar sementes de sonhos na cabeça das crianças.

Thais Teixeira (ao centro) com equipe da Electric Films gravando no Rio de Janeiro. Foto: arquivo Thais Teixeira.

“O documentário era pra mostrar pras crianças que, mesmo elas não virando profissionais, não virando faixas-pretas, a gente plantou um sonho na cabeça delas que nunca mais vai tirar”

Thais Teixeira, produtora da Electric Films e carioca criada em Olaria

Quem também se impressionou com o prêmio foi o idealizador do projeto, Douglas Gentil, embora nunca tivesse duvidado do talento de seus alunos. A visibilidade de Abu Dhabi foi só uma oportunidade para eles alcançarem lugares onde de fato merecem estar, diante de todo o treino já reconhecido em prêmios dentro do Brasil.

Douglas Gentil, fundador do Maré Top Team. Imagem: reprodução.

“A gente nasceu pra vencer. Ninguém é mais propenso à vitória do que uma pessoa que precisa. O atleta que nasce em berço de ouro vai ser campeão, porque vai ter o melhor lugar pra treinar, vai ter uma boa alimentação… mas quando iguala na vontade, ninguém ganha da gente. Vontade ninguém tem mais do que o brasileiro, e o favelado então é o rei da vontade”

Douglas Gentil, fundador do Maré Top Team
A vida após Abu Dhabi

Não foram só 21 medalhas de ouro, prata e bronze que voltaram com as crianças e adolescentes dos Emirados Árabes em novembro do ano passado; muitas portas se abriram e muitas tiveram que ser abertas para mais gente entrar. Segundo Douglas Gentil, naquela época eles tinham 5 unidades no Rio de Janeiro, que começaram a receber mais alunos, e após o retornou abriram ainda mais unidades, sendo a décima inaugurada na última segunda-feira (09) na quadra do Piscinão de Ramos. Lá, as crianças terão aulas em 3 horários por dia, pelo treinador Alisson Rafael, também formado no Maré Top Team.

Projeto foi apresentado às crianças do Piscinão de Ramos no dia 09 de outubro. Foto: Carolina Vaz.

Para Ryan e Júlia, a experiência em Abu Dhabi mostrou que treinando, dando o seu melhor, é possível fazer conquistas fora do país, alimentando um ciclo de treinar mais e conquistar mais. Isso é observado também pelo treinador Cristiano Salustino, que viu os alunos muito mais motivados para serem selecionados para as competições, além de atrair mais crianças. A edição 2023 do campeonato mundial começa em 04 de novembro, e desta vez o professor Douglas adotou o critério da meritocracia, observando entre os veteranos e os novatos quem se esforçava mais para representar o Maré Top Team nos Emirados Árabes.

Atletas do projeto em Abu Dhabi, em novembro de 2022. Imagem: reprodução.

No último final de semana, a equipe da Electric Films voltou à Maré para gravar a segunda parte dessa história. No primeiro documentário (veja aqui) os atletas foram apresentados, contaram um pouco do que representa o Maré Top Team para eles, falaram da expectativa sobre suas lutas e sobre seus resultados. Muita gente que só conhece os números – 10 unidades, mais de 20 medalhas conquistadas no mundial, uma das 10 melhores equipes do Brasil – assistindo o documentário pode ver a rotina da sede do P.U., onde as crianças treinam diariamente.

Equipe da Electric Films com time do Complexo do Alemão. Foto: arquivo Thais Teixeira.

O segundo documentário será exatamente sobre a vida dessas crianças e adolescentes um ano depois, tudo que elas conquistaram como patrocinadores e serviços de saúde. Vai abordar mais as histórias de vida de atletas da Maré e do Complexo do Alemão, além da expectativa de acompanhá-los em Abu Dhabi no próximo mês. Em meio a uma série de operações que vêm vitimando a Maré há uma semana, uma nova produção audiovisual se iniciou, com o propósito de mostrar a potência da população mareense.

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