Espetáculo A Lua da Maré celebra 10 anos do Entre Lugares
Entrevistas por Ana Cristina da Silva e Carolina Vaz.
Texto por Ana Cristina da Silva.
No ano em que completam 10 anos de existência, o projeto Entre Lugares reuniu cerca de 40 atores em cena para a execução de um espetáculo escrito, pela primeira vez, por um de seus tantos alunos. Intitulada A Lua da Maré, a peça conseguiu emocionar o público ao narrar a história de uma personagem que é o reflexo de muitas mulheres mareenses, tudo isso enquanto usava como pano de fundo diferentes momentos que marcaram o conjunto de favelas nos últimos anos. Com apresentações nos dias 09, 10 e 11 de dezembro no Museu da Maré, o espetáculo teve entrada franca e recebeu até 200 pessoas por dia. Para além da plateia organizada em formato arena, o Entre Lugares também surpreendeu com o cenário marcante que contava com o auxílio de um projetor.
O ESPETÁCULO
Entrando para a lista de dramaturgias de Pedro Emanuel, A Lua da Maré também foi escrita pelo aluno Jefferson Melo, sendo ela a sua primeira dramaturgia encenada. No desejo de se criar uma peça diferente de todas as outras, mas que ainda assim fosse capaz de celebrar os 10 anos do Entre Lugares, juntou-se a ideia de Pedro em trabalhar com algo positivo e inspirado no sistema solar com o anseio de Jefferson em destacar as histórias de quem vive a favela em sua totalidade. Esta junção fez nascer Lua, a grande protagonista do espetáculo: mulher preta, moradora da favela e representante da pauta LGBTQIA+ que tinha o sonho de ser astronauta. Tendo como referência as vivências de muitos moradores, a peça ainda contou com uma personagem inspirada na avó de Jefferson: Lourdes, vó da protagonista. O dramaturgo que já vinha emocionado há muito tempo com a concretização de sua obra, não se conteve ao ver sua avó na plateia no segundo dia de apresentação.
“Eu sempre procuro homenagear as pessoas que eu gosto e esse ano eu falei assim: ‘cara, eu tenho que botar a minha vó’. Você vê a minha vó aí na personagem da Lourdes. Ela é a pílula de humor da peça, é a matriarca da família, né, a gente tá falando sobre uma mulher, preta, mareense e minha vó é do tempo da palafita, ela senta às vezes com a gente e vive contando histórias assim. Receber ela aqui e ouvir esse texto na boca desses amigos favelados pra mim é muito significativo”.
— Jefferson Melo, dramaturgo.
“A Lua da Maré é um espetáculo que celebra esses 10 anos do Entre Lugares e a gente acabou também resgatando um pouco da memória histórica e política que a gente viveu até aqui, através do caminho de vida de uma personagem chamada Lua. (…) É um espetáculo de discordância também, hoje a gente está vivendo um período político muito delicado em relação às polaridades, aos lados. Então eu acho que traz essa reflexão de uma forma muito realista, mas que também conta a nossa memória, que conta a nossa história, e a gente tem muito orgulho. Por isso que a gente traz essa história pro palco”.
— Flávio Vidaurre, coordenador do projeto.
A história começa em 2012 e, no decorrer do espetáculo, o público observa a trajetória da protagonista até o ano de 2022. Sendo moradora do Conjunto de Favelas da Maré, Lua é vista em cenas que vão desde o típico almoço em família em um dia de domingo até os momentos de preocupação durante as violentas operações policiais que ocorrem no território. A peça relembra momentos como a tentativa de implementação das UPPs (Unidade de Polícia Pacificadora) na Maré, que aconteceu em 2014, e aborda ainda os impactos sofridos no bairro após o impeachment de Dilma Rousseff, que levou Michel Temer a ocupar o cargo de Presidente da República no ano de 2016. No entanto, é no momento em que retrata o início da pandemia causada pela covid-19 que a peça arranca lágrimas da plateia. Apesar de tudo, em meio a transições performáticas, Lua se mostra uma protagonista forte e sonhadora, que apesar das tantas turbulências ao longo de seu amadurecimento, ainda consegue trazer momentos de descontração e boas risadas.
“Empoderar as pessoas de diversas formas, falando sobre preto, periférico, travesti, assim como eu, LGBTQIA+ é muito importante, é muito importante fazer impacto social na periferia. O Entre Lugares trabalha com o Teatro do Oprimido, a pessoa vira protagonista da sua própria história ou de uma coisa próxima à sua realidade. A gente trabalha com o que está mais perto da gente, com trabalhos que representam a nossa pele. Tudo que está em nós a gente bota no espetáculo”.
— Katia Deusa, atriz e aluna do projeto.
Para dar vida à protagonista foram escolhidas diferentes atrizes. Afinal, a personagem principal faz jus ao seu nome e, tal como o satélite natural, apresenta diferentes fases de vida, já que a história contada no espetáculo começa em 2012 e se encerra somente no ano de 2022. Para Katia Deusa, uma das intérpretes de Lua, o maior desafio foi pensar e construir as emoções de uma personagem que ia amadurecendo no decorrer das cenas. “Cada Lua tinha uma história, né, e em cada história a gente tinha que jogar uma emoção diferente. A gente trabalhava muito com a emoção, com o exercício de rasaboxes, jogando intensidade. (…) nosso corpo teve que estar 100% vulnerável, porque nossas emoções internas tinham que ser jogadas para fora”, explica a atriz.
COLETIVIDADE
Apesar de A Lua da Maré ter sido escrita somente por Pedro Emanuel e Jefferson Melo, o resultado final foi fruto de um intenso trabalho coletivo. No espetáculo, quem conta a história de Lua são as Três Marias. Sheila Cintra, intérprete da personagem Maria 2, conta que inicialmente o trio inspirado nas estrelas que compõem a constelação de órion, faria apenas um simples trabalho de narrativa se a diretora Renata Tavares não tivesse aparecido com um novo olhar sobre as personagens. No resultado final as narradoras do espetáculo eram destaque ao cantar e dançar, fazendo com que o título de estrelas viesse em todos os sentidos possíveis. “É muito difícil, para mim cantar desse jeito, ainda mais com microfone. A gente teve que pegar pesado, eu, Leona, Maryana (…) mas a gente trouxe isso pra gente, com essa diversão de cantar e dançar como se fossemos estrelas dos anos 70. Foi bem divertido descobrir a estrela que tem dentro da gente”.
Com pouco tempo de ensaio e preparo, A Lua da Maré foi um dos espetáculos mais desafiadores feitos pelo Entre Lugares. Afinal, trazia consigo novas experimentações como, por exemplo, o formato de teatro arena, um cenário suspenso que contava com apoio de uma projeção e uma única protagonista encenada por 9 diferentes atrizes. Com um elenco composto por 40 artistas, também foi preciso muito foco e muita força de vontade durante o processo. “Eu acho que essa peça foi um pouco mais complicada que as outras porque era sempre o elenco todo em cena, em todo o momento. Por mais que tivessem certos núcleos que alguns não estivessem, todo mundo sempre tinha que estar ali, seja para uma música, para uma dança, seja pra fazer uma transição. Todos os ensaios sempre teriam que ter todo o elenco e isso é muito difícil, porque todo mundo tem uma vida por trás”, conta Sheila. Para tornar este sonho real, na semana antes da estreia, todas as pessoas envolvidas no projeto chegaram a participar de ensaios que iam até às 3h da manhã.
“É muito lindo ver o Entre Lugares, porque o Entre Lugares não é só uma galera que faz teatro, o Entre Lugares é uma galera que transforma vidas, porque transformou a minha vida e a gente vê que cada vida é transformada nesse processo. Então a palavra que eu tenho pra me definir aqui agora, no que eu tô sentindo, é esperança. É esperança de que muita coisa ainda vai acontecer, é esperança de que esse projeto ainda vai transformar muitas vidas, desde essas criancinhas que estavam apresentando com a gente hoje até a vida de muitos adultos e idosos que podem fazer parte disso. E é isso, é esperança, se as pessoas não veem, eu vejo”.
— Sheila Cintra após a estreia do espetáculo.
ENTRE LUGARES MARÉ
Desde que se iniciou, o projeto atua com diferentes oficinas de capacitação artística para os alunos. Entre elas estão as oficinas de dramaturgia, à qual Pedro Emanuel é familiarizado; corpo e movimento, que fica por conta de Gabriella Luiz; e a famosa e importante oficina de montagem teatral, dos diretores Tiago Ribeiro e Renata Tavares, oficina essa que é responsável por preparar, todo ano, os espetáculos do projeto. De acordo com a coordenadora Vanessa Greff, eles sempre abrem inscrições para até 30 alunos, mas esse número sempre é ultrapassado e o projeto, que tem duração de 12 meses, costuma receber cerca de 80 alunos por ano. “Tem alunos aqui nessa montagem de 10 anos que participaram do primeiro espetáculo, que foi o Santa Maré. Estão com a gente aí há 10 anos nessa pesquisa, falando sobre essas pessoas, que fizeram história nessa Maré, que tem ali Seu Agamenon, que tem ali a Dona Orosina”, diz Vanessa ao citar duas importantes figuras para a Maré que já chegaram a ser homenageadas em espetáculos anteriores do Entre Lugares.
“Todo ano a gente produz um espetáculo, e isso movimenta uma engrenagem muito grande. Não só nos aspectos humanos, mas materiais também, de tempo, de espaço. Quando a gente produz um espetáculo teatral aqui dentro da Maré, a gente fala de memória, a gente fala de história, de pessoas, referências vivas que nos inspiram, que nos alimentam na forma criativa”.
— Flávio Vidaurre.
Para além das suas vastas oficinas de capacitação, o Entre Lugares também é muito conhecido dentro e fora do território graças ao festival Maré em Cena, que já conta com oito edições, onde a última foi realizada em agosto deste ano. Graças ao seu histórico de grandes talentos, tais como os integrantes da Cia Cria do Beco que ali se conheceram, o projeto é muito prestigiado em tudo o que produz. Afinal, qualidade é uma das muitas características do Entre Lugares que, durante a pandemia, chegou a conquistar o prêmio Jovem Talento – Troféu Manoela Pinto Guimarães na 16° edição do Prêmio APTR Nacional, na categoria de melhor elenco com a peça-filme Invencíveis.