Jornada Favelades Universitáries apresenta produção de pesquisa original das favelas

Educação, Notícias

Por Carolina Vaz

Com colaboração de Renata Dutra

Foto de capa: Rafael Daguerre/Distopia

O Fórum Favela Universidade realizou, entre os dias 13 e 17 de setembro, sua segunda edição da Jornada Científica Favelades Universitáries, uma jornada científica para debates, apresentação de trabalhos acadêmicos, oficinas, minicursos e apresentações artísticas majoritariamente de faveladas e favelados. Ocorrida pela primeira vez de forma híbrida, teve sua abertura e seu encerramento presenciais, simbolicamente em espaços de ensino e pesquisa: o Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS/UFRJ) e a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz). O restante da programação aconteceu online, e foi composto de 5 mesas, 4 rodas de conversa, 4 sessões de apresentações culturais, 2 minicursos, 3 oficinas e 4 simpósios temáticos, que tinham 62 trabalhos inscritos. Apresentamos aqui algumas dessas atividades, marcadas pela defesa da presença da população faveladas nos espaços formais de pesquisa, como as universidades e outras instituições, mas também pela defesa dos espaços considerados não formais, onde muitos dos participantes atuam.

Mesa de abertura com Renata Soares, Cristiane Vieira (no centro) e Taisa Falcão. Foto: Rafael Daguerre/Distopia.

A favela que fala sobre si

A mesa redonda “Produção, manutenção e circulação de conhecimentos das favelas”, no dia 14 de setembro, foi marcada pelo reconhecimento de iniciativas autônomas das favelas em se pesquisar e se registrar. Mediada por Antônio Carlos Vieira, representando do Museu da Maré e CEASM, teve as apresentações de Thamires Ribeiro, do Arquivo Dona Orosina Vieira (ADOV) do Museu da Maré, e Luiz Lourenço, representando o GT Pesquisa do Fórum. A mesa destacou deu destaque a três iniciativas de produção de conhecimento sobre a favela. Thamires Ribeiro apresentou o Arquivo Dona Orosina Vieira (ADOV), arquivo voltado apenas para documentos, fotos, jornais e outros materiais que compõem a história da Maré, fundado pelo CEASM em 2002 e que se localiza hoje no Museu da Maré. Ela destacou a atuação do ADOV não apenas com material histórico mas também no presente, renovando-se sempre com os depoimentos dos moradores de hoje. Mestranda em Preservação e Gestão do Patrimônio Cultural das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, ela ainda falou sobre sua monografia a respeito dos documentos de cadastro de moradores da Nova Holanda quando esta era um Centro de Habitação Provisória.

Luiz Lourenço apresentou o Grupo de Trabalho do Fórum Favela Universidade que faz a catalogação de trabalhos acadêmicos sobre Maré e Manguinhos. Segundo ele, encontrou-se trabalhos em muitas áreas de conhecimento, e grande parte produzidos por moradores. O pesquisador destacou que o interesse pelos dois bairros se deu mais por parte dos “crias” (moradores). Após um longo processo que passou pela construção da equipe, formação, discussões sobre a pesquisa e levantamento de dados, o GT encontrou 831 trabalhos, sendo 582 sobre Manguinhos e 249 sobre a Maré. Alguns destaques da pesquisa são: grande parte dos trabalhos são artigos, portanto pesquisas mais curtas; outra parte significativa é composta de dissertações de mestrado. Apesar de abrangerem várias áreas, em Manguinhos destacam-se os trabalhos na área de saúde, em virtude da existência da Fiocruz no território. Também, a maioria das pesquisas foram publicadas a partir dos anos 2000.

Outra iniciativa atual apresentada foi a do Dicionário de Favelas Marielle Franco, também conhecido como Wikifavelas, que foi apresentado por Gabriel Nunes. Segundo ele, a missão do dicionário é ser um facilitador para o resgate de memória das favelas. Na mediação da mesa, Antônio Carlos Vieira destacou a mudança de perfil das pesquisas: se antes a favela era estudada como “objeto” por acadêmicos de fora, hoje ela é pesquisada por seus “intelectuais orgânicos”, seus pesquisadores de dentro.

Pedagogia crítica para espaços formais e não formais de educação

Um dos minicursos do evento foi “Pedagogias críticas e insurgentes: articulação entre educação popular e escola pública na ‘defesa’ de uma dimensão ampliada de educação“, do Núcleo de Estudos e Pesquisas Sociais da Maré (NEPS-CEASM). Apresentada por Humberto Salustriano, Francisco Overlande e Lourenço César, eles contaram um pouco de suas histórias com a academia, sendo moradores da Maré, das primeiras turmas do CPV-CEASM. Começando o minciurso pela pedagogia, eles criticaram a pedagogia “tradicional” que referencia muitos autores eurocêntricos, ignorando os que fogem a esse padrão, e mais especificamente na abordagem de favela e territórios periféricos que reproduz uma inferiorização. Assim, defenderam a educação popular, como uma ruptura com a educação hegemônica, e aplicada mais frequente nos chamados “espaços não formais de educação”, como ONGs, pré-vestibulares populares, terreiros e sindicatos. Ao mesmo tempo, os membros do NEPS reconheceram a necessidade de inserir a população periférica nos diversos níveis de graduação, assim como utilizar as bases da educação popular para mudar a escola pública que já temos. “A gente tem que disputar a escola como um projeto de sociedade”, afirmou Francisco Overlande. Por fim, eles recomendaram alguns trabalhos sobre espaços de educação popular que atuam com a pedagogia crítica, como o próprio CEASM, em tese de Humberto Salustriano.

Registro do minicurso de Pedagogias Críticas realizado pelo NEPS. Fonte: Facebook do Fórum Favela Universidade.

Formação de base para transformar a universidade

No último dia, parte da audiência online se reuniu novamente, no auditório da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV), para a última mesa e a conferência de encerramento. A mesa “Educação popular e a luta por acesso e transformação da universidade” contou com Lourrane Cardoso, do Pré-vestibular Popular JPAulas (Jacarepaguá); Luiz Claudio Torres, do Pré-vestibular Construção (EPSJV/Fiocruz); Rubens da Silva, do Pré-vestibular Biblioteca Engenho do Mato (Niterói); e Nlaisa Luciano, coordenadora do CPV-CEASM, além da mediadora Taisa Falcão, representando o Fórum Favela Universidade. Conforme o tema da mesa, as e os participantes falaram sobre suas próprias trajetórias na escolarização e no ensino, em grande parte passando pela escola pública e acessando o pré-vestibular popular para entrar na universidade, e posteriormente voltar para os prés populares como educadores.

Da esquerda para a direita: Nlaisa Luciano, Rubens da Silva, Taisa Falcão, Lourrane Cardoso, Luiz Claudio Torres e a tradutora de Libras Mariana de Sousa. Foto: Rafael Daguerre/Distopia.

Um dos principais pontos abordados foi o papel do pré popular de estimular a consciência crítica nos educandos. Luiz Cláudio Torres focou nesse ponto, de reconhecer o público dos prés como parte da população mais vulnerável do país, e não somente viabilizar o conhecimento necessário para a entrada nas universidades como também estimular o senso de coletividade, seja no reconhecimento de direitos conquistados seja no apoio após o ingresso no ambiente universitário, que apesar de ser um direito ainda é hostil a essa população. Um exemplo disso foi a própria experiência de Lourrane Cardoso, que estudou em pré popular e só assim pôde saber das políticas de cotas que depois acessou. Ela abordou, em sua fala, os desafios desses espaços educativos na pandemia, sem atividades presenciais: aulas foram transformadas em áudios e PDFs, que os alunos conseguiam acessar em horários alternativos; muitos alunos começaram a trabalhar; e os militantes do corpo docente também se engajaram em outras ações como distribuição de cestas básicas. Outro ponto de sua fala foi sobre a universidade pública ainda não ofertar o suporte suficiente para a classe trabalhadora que nela ingressa.

“A gente tem que começar a avançar para o debate de que não é só acesso, é permanência. Porque o aluno preto e favelado que está na universidade é trabalhador, vai ter que dividir a vida entre trabalho e universidade. Sem isso a pessoa não vai se desenvolver como pesquisador”

Lourrane Cardoso

Essa questão, de muitos adolescentes e jovens estarem trabalhando, se fez presente também na fala de Rubens da Silva, segundo o qual muitos alunos de ensino médio estão deixando de ir à escola e ao pré-vestibular por causa de trabalho. Assim, a imagem da universidade como um lugar elitista e inacessível colabora também para que se sintam pouco estimulados a ingressarem. Por fim, Nlaisa Luciano reforçou o engajamento dos militantes dos prés, com formação, reuniões, assembleias, planejamento dos conteúdos em prol justamente de formar estudantes preparados para o ENEM e os vestibulares mas também com consciência crítica, num viés guiado por Paulo Freire. Ela destacou, para além do discurso, a importância da ação, de travar os debates interseccionais no dia a dia do curso.

“Pensar essa narrativa que se constrói de um lugar que não é formal, mas que a partir do entorno, do território, a gente acaba construindo política de base, de pensamento”

Nlaisa Luciano
Público do último dia. Foto: Rafael Daguerre/Distopia.

Veja online

É possível assistir no canal de Youtube do Fórum Favela Universidade as rodas de conversa Racismo e suas Vertentes; Trabalho e universidade, desafios da permanência e inserção; Juventude periférica e o direito ao sonho; e Luta Antimanicomial. Quanto às mesas, além das mencionadas é possível assistir a “Como podemos articular o racismo estrutural e ambiental aos impactos da mudança climática?”; e “A comunicação como ferramenta de transformação: a importância da comunicação popular dentro das favelas”; além da Conferência de Encerramento. Atividades culturais, como mostra de curtas, apresentação de MC e de slam, também podem ser vistas no canal.

A realização da Jornada Científica é do Fórum Favela Universidade, junto com instituições educativas e culturais como o Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (CEASM), Museu da Maré, Fiocruz, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e RedeCCAP – Casa Viva. O Fórum Favela Universidade tem sua fundação marcada por um encontro de prés populares no Museu da Maré em 2017.

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