Legado ou cicatrizes? O que anda acontecendo com as favelas da cidade olímpica?

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Por Carlos Gonçalves

“A favela, hoje cada vez mais bairro, onde quer que se encontre, na Zona Sul, no centro ou nas periferias, está na raiz da questão social brasileira, de herança escravista, cujo tratamento hierarquizado diferenciador e desigual marca a construção e a manutenção da cidade e da sociedade”. Adair Rocha no seu livro Cidade Cerzida, a construção da cidade no morro Santa Marta.

Já percebeu que um jogo de futebol traz muitos valores? Entre eles uma engraçada sensação de nunca ser só um jogo, um certo sentimento de estar junto, ali, jogando na magia de conseguir mais um gol. Lembrar do tempo de menino, dos momentos do jogo do Ronaldinho Gaúcho no Barcelona, é lembrar da febre dos seus famosos elásticos que faziam toda  a escola parar para vê-lo, é lembrar que quando saía um dos seus famoso gols eu sentia como se também, de alguma forma, tivesse feito o gol junto com ele. Assistir uma pelada de rua, e ver as crianças disputando quem vai ser o Neymar, me lembra um pouco dessa época, e de certa forma consigo ver a mesma beleza. Ora, quem não gosta de ver aquele passe perfeito, acabando com aquela finalização perfeita, lembrando do seu ídolo futebolístico em um jogo de rua? É quase como se você estivesse ali no jogo, vibrando na mesma frequência que o autor desse gol. Dentro de toda essa realidade, as grandes corporações que financiam os megaeventos também sabem de cada detalhe que refletimos  até aqui, e entendem bem como usá-los. Transformam um ídolo futebolístico, um jogo de futebol ou até mesmo um Estádio, que estão repletos de vários sentimentos sobre eles, em um mero produto a ser vendido. Para entender melhor como o Comitê Olímpico Internacional (COI) e a FIFA conseguiram transformar toda essa cultura do esporte em uma simples mercadoria, temos que voltar um pouco na história, e entender melhor a sua importância em uma nova etapa do capitalismo, que cria uma outra relação sócio-econômica entre a dinâmica futebolística e a cidade no mundo pós-bipolar.

Se pensarmos na cidade como uma boa obra potencializada pelo capitalismo, entender como ela se tornou hoje uma resposta para as suas crises é interpretar mais do que o Rio de Janeiro viveu no ano de 2016. A partir da década de 1980, o capitalismo viveu em seus países desenvolvidos a crise chamada de reestruturação produtiva, ou seja, a passagem de um capitalismo mais “moderado”, presente na lógica do estado de bem estar social, para um sistema neoliberal.  Diferente do discurso vendido durante a Guerra Fria, as políticas do Estado de bem estar social não perduraram por muito tempo. Reduziram-se os recursos que garantiam direitos a estruturas de políticas públicas, universais e gratuitas, a um modelo neoliberal, principalmente em resposta ao crescimento de imigrantes nos seus territórios. Investir nessas estruturas de garantias de direitos se tornou cada vez mais exclusivo e pontual, bem recebido pelas classes dominantes, que já não se sentiam à vontade com os programas sociais que vinham se seguindo. A economia mundial se endividava mais e mais, solidificando um modelo que iria estourar em 2008.

Diante desse novo modelo, e as suas crises geradas, a salvação se apresentava na mística palavra “renovação urbana”.  Começa então uma operação que introduz  uma nova etapa nas cidades, com a transformação de grandes equipamentos culturais (museus, teatros etc) e símbolos arquitetônicos. As mudanças se insurgem como formas que dão um ar de sofisticação nas cidades, dinamizam o turismo e o mercado imobiliário, há um custo que para o Estado e a elite local agradava muito: uma forte elitização do espaço e um aumento expressivo da exclusão urbana das classes trabalhadoras. Essa “receita urbanística” se espalhou pelo mundo todo em poucos anos depois, de tal forma que alguns grandes pensadores urbanistas chegaram a chamar esse fenômeno de “pensamento único nas cidades”. E não são poucos os exemplos dessas obras simbólicas pelo mundo: a renovação das docas de Londres, o Museu Guggenheim em Bilbao dentre tantos outros incontáveis exemplos desse “espetáculo urbano” que se conclamam como messiânico aos olhos do capital.

    Os Estados que gestavam essa receita, contudo, temiam que a sua expressiva investida em obras faraônicas e o seu não investimento em políticas sociais gerassem em algum momento uma reação social que pudesse deixar em cheque a sua representatividade. Para burlar esse paradigma, tiveram que pensar em uma ideia que pudesse trazer o respaldo social de legitimar essa mina de ouro imobiliária/construção civil, e que ao mesmo tempo conseguisse somar um sentimento de solidariedade/nacionalidade a sua gestão. Percebeu-se então que grandes eventos esportivos normalmente tinham o potencial de trazer esse sentimento à tona, e que sua aceitação poderia garantir que esse jogo de cartas marcadas pudesse perdurar por um bom tempo. O Comitê Internacional Olímpico (COI) e a Federação  Internacional de Futebol (FIFA) começaram a ser vistos como verdadeiras galinhas dos ovos de ouro, e disputados ferozmente pelo mundo todo. Ciente da importância para esse novo capítulo na história do capitalismo, as direções desses grupos esportivos se apressaram para garantir também a sua fatia do bolo, e criaram sua própria maneira para complementar as peças desse tabuleiro que se mostrava promissor.

Diante disso, para que pudesse  transformar os seus espetáculos esportivos em grandes balcões de negócio, a FIFA e o COI, impuseram um conjunto de “exigências urbanísticas”, que eram necessárias para garantir a existência de seus eventos. E mais, faziam sugestões aos governantes locais de empresas “amigas” que poderiam auxiliar nessas obras. Estava aí nascendo uma parceria, que anos depois iria garantir leis de exceção em centenas de países, e contínuas denúncias de escândalos envolvendo esses setores com uma única justificativa: a solidariedade esportiva.

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O Brasil, olhando essa conjuntura, viu nos megaeventos uma grande oportunidade lucrativa, somado a isso, a possibilidade de ter uma moeda perfeita, de troca eleitoral, já que ambos os eventos tinham como peculiaridade estarem no ano das eleições. Cesar Maia foi um dos principais articuladores desse movimento na  época do seu primeiro mandato à prefeito na cidade do  Rio de Janeiro, que anos depois foi absorvido e aprimorado pelo Lula.

Um evento atrás do outro começa a tornar a cidade do Rio de janeiro em uma vitrine internacional, com um modelo urbanístico que traria sobre a sua essência o fortalecimento excluso e racial da população mais pobre brasileira. A ECO 92 foi um grande exemplo disso. Sediada no Rio de Janeiro, teve, entre outras, uma  medida de “segurança” que teve grande repercussão na mídia internacional, no momento que o exército brasileiro colocou tanques de guerra apontados para a favela da Rocinha. Ora, esse sentimento que o exército criou de trazer “segurança para o asfalto”, traz como pano de fundo a estigmatização da favela como o espaço violento, e uma resposta clara de que eles devem ser combatidos. Atualmente, após as Olimpíadas, vemos com clareza as consequências dessa gestão pública com as mais de 15 favelas que estão em plena guerra entre facções criminosas ou milícias na cidade do Rio de Janeiro. Em média, cerca de 21 bairros enfrentam hoje o medo dessas guerras e o autoritarismo gerado pelas ações do Estado. Cria-se assim um abismo que potencializa a luta dos segmentos mais pobres e negros da população contra o reacionarismo declarado na cidade olímpica.

Gardênia azul,  São Carlos, Cidade de Deus, Tabajaras, Babilônia e Chapéu Mangueira são exemplos dessas favelas em guerra. Quatro delas (Tabajaras, São Carlos, Babilônia e Chapéu Mangueira) por disputa entre traficantes, e as outras duas entre traficantes e milicianos, unificadas pelo único fato de todas terem uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). A UPP, projetada por muitos e colocado como a solução para a nossa segurança pública, sempre foi na verdade um projeto falido desde o  início. Ora, como é possível pensar que o grupo que historicamente é responsável por promover o genocídio do povo negro e o extermínio da população favelada pudesse parar e entrar em convívio com um outro script do dia para a noite nesse mesmo enredo? Era de se esperar que não desse certo, agora com a crise do Estado ficou bem mais nítido que na verdade o seu papel e objetivo foram sempre um só: a reorganização do narcotráfico do Rio de Janeiro, tensionado por uma propina chamado de “arrego”. Propina essa, vista com muito mais importância agora, já que o salário dos militares já não cai na mesma frequência de antes. Pois bem, suas parcerias público privado, que sustentam a UPP, como a Coca-cola Brasil, Odebrecht e CBF e o seu parceiro internacional, o Consulado Norte Americano, permitem ver os frutos do seu investimento sobre a população negra e nordestina que se encontra nas periferias cariocas.

Assim, entender os megaeventos como uma política mais ampla de Estado, e que serve aos interesses do capital internacional, é central para a compreensão do seu papel segregador e racista na dinâmica que a cidade sofre. Grandes eventos como esses que ocorreram no Brasil trazem uma forte dinâmica econômica para o país, e no caso das Olimpíadas, para uma cidade específica que é o Rio de Janeiro. Entretanto a pergunta que devemos fazer é: lucros para quê? E lucros para quem? A gestão desses eventos aconteceu justamente para favorecer aqueles que já são favorecidos, e endurecer a repressão daqueles que já são reprimidos. Todavia, mesmo com todo esse endurecimento na repressão que ocorreu na cidade, tivemos espaço para novas formas de resistência dessas ditas “minorias”. O próprio lema “não vai ter Copa”, tão entoado nas ruas, foi um reflexo claro das lutas que viriam, e dos grandes atos ou ocupações que se espalhariam rapidamente por toda a cidade. Da vitrine para vender cidades, a Copa e as Olimpíadas, também se transformaram em uma grande plataforma para rebelar-se por lutas contra as cicatrizes olímpicas deixadas nos 111 tiros.

 

Escrito por:

Carlos Gonçalves

No microfone, Carlos Gonçalves, autor do texto.
No microfone, Carlos Gonçalves, autor do texto.

Referencias bibliográficas:

Brasil em jogo o que fica da copa e das olimpíadas?

Jogo sujo, o mundo secreto da FIFA

Revista História

 

 

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