Liberdade e autonomia: direitos negados pela ausência da acessibilidade
Entrevistas por Ana Cristina da Silva e Ellen Ferreira
Texto por Ana Cristina da Silva
A acessibilidade é um direito fundamental, pois garante a inclusão de idosos, pessoas com deficiência e pessoas com mobilidade reduzida nos mais diversos âmbitos sociais. Na constituição, existem algumas leis voltadas para estes grupos, como a Lei nº 10.741/2003, conhecida como Estatuto do Idoso, e a Lei nº 13.146/2015, também chamada de Estatuto da Pessoa com Deficiência. Porém, muita coisa parece não sair do papel, fazendo com que a acessibilidade plena ainda seja um sonho distante para muitos, principalmente para aqueles que vivem em territórios periféricos que são frequentemente esquecidos e negligenciados pelo Estado. Com a precariedade na infraestrutura e a ausência de políticas públicas nas favelas do Rio, estas pessoas perdem, por muitas vezes, sua autonomia e são privados até mesmo de direitos humanos básicos como, por exemplo, a educação e o lazer.
De acordo com os dados da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), em 2019, cerca de 17,3 milhões de pessoas com dois anos ou mais de idade tinham alguma deficiência — representando 8,3% da população brasileira — enquanto as pessoas de 60 anos ou mais representavam 16,4%, o equivalente à 34,4 milhões de pessoas. No entanto, apesar de se encontrarem em grande quantidade, estes grupos sofrem diariamente com o descaso da acessibilidade e, por mais que esteja incluso na constituição, ainda faltam rampas de acesso, textos em braile, banheiros adaptados, pisos táteis e calçadas baixas na maioria dos espaços públicos.
“Existe um censo do governo para saber quantas pessoas com deficiência existem, porém esse censo que o Governo faz não dá voz à pessoa com deficiência, ele não dá voz à família da pessoa com deficiência. A gente é só um número, somente um número”.
— Antônia Maria, cadeirante de 42 anos.
“Quando falta acessibilidade também falta liberdade”
Se a acessibilidade é ruim em locais supervalorizados, como nos pontos turísticos do Rio, dentro dos territórios periféricos ela é quase inexistente. Para Antônia Maria Souza, de 42 anos, a dificuldade já começa em sua própria casa. Afinal, como muito se sabe, o território da Maré cresceu verticalmente, contando com moradias de vários andares. Infelizmente, muitos não conseguem adquirir uma casa que seja no primeiro andar e Antônia é uma dessas pessoas. A cadeirante do Parque Rubens Vaz mora no 2º andar, onde o único acesso a sua casa é através de um lance de escadas. “O nosso país infelizmente ainda passa muito pela acessibilidade pela metade. Sem acessibilidade não existe autonomia, não existe liberdade. Liberdade essa que todos nós apreciamos. Queria eu ter a liberdade de sair facilmente da minha casa”, diz Antônia.
Quem também enfrenta problemas parecidos é Jorge Geraldo de Souza, mais conhecido pelo apelido de Jorge Bob’s. O mareense está com 60 anos de idade, mas transita pela comunidade em cima de um carrinho de madeira improvisado desde os 13. Aos 9 meses de vida a poliomielite afetou suas pernas, mas diferente de Antônia, ele nunca se adaptou ao uso de uma cadeira de rodas e por isso seguiu aprimorando seu carrinho de diferentes formas. “Tem rua que é horrorosa, até com esse carrinho aqui é ruim. Agora botaram um asfalto e tá melhorzinho, mas quando tá com aquele asfalto grosso o carrinho fica agarrando, você empurra e vai agarrando”, conta Jorge. De acordo com ele, independente do lugar, “praticamente a Maré toda, pra quem é cadeirante, é horrível de transitar”, isso talvez explique o motivo pelo qual ele e Antônia nunca tenham se visto pessoalmente, por mais que ambos morem na mesma rua, a Massaranduba.
Medo e insegurança nas ruas
A acessibilidade deve existir para garantir o direito de ir e vir de um indivíduo, sem prejudicar sua segurança e integridade física. Assim sendo, ela também é de extrema importância para pessoas idosas, tal como Dona Francisca Maria de Aquino, de 79 anos. Moradora da Baixa do Sapateiro, ela é completamente apaixonada pelo Conjunto de Favelas da Maré, mas a falta de acessibilidade faz com que ela ande pelas ruas com medo. “Não tá seguro. Eu só olho pro chão, eu não posso levantar a cabeça porque aí pronto, capaz de eu cair”. Assim como muitos idosos da Maré, Dona Francisca sofre com dores nos braços e joelhos e precisa sair de casa com frequência para consultas médicas. Calçadas muito altas, ruas esburacadas e ausência de corrimão em pontes e escadarias são apenas alguns dos obstáculos no trajeto de pessoas idosas e com mobilidade reduzida.
Enquanto a passarela 11 da Avenida Brasil é totalmente inviável para cadeirantes por conta das escadas, a passarela próxima à comunidade do Sem Terra, que dá acesso à estação de BRT da Maré parece segura e acessível à distância. No entanto, não adianta trabalhar com acessibilidade se não houver manutenção. No intervalo de suas vastas rampas, a passarela conta com até três grandes buracos, que além de impedir que um cadeirante passe por ela sozinho, ainda pode ocasionar no acidente de qualquer pessoa desatenta. Para algumas pessoas, isso pode não ser grande coisa, mas pessoas como Dona Francisca sentem insegurança ao passar por lugares deste tipo. “Aqui de frente para a minha casa tem um valão, para a gente atravessar pro outro lado tem uma ponte, mas não tem lugar pra gente segurar nem nada. É a gente de um lado e as motos passando do outro”.
O simples se torna complicado
Como gestora do grupo Especiais da Maré, Antônia Maria já ouviu muitos relatos sobre as dificuldades rotineiras das pessoas com deficiência dentro do território. O grupo oferece suporte para as famílias com doações de comida, roupas e remédios, mas também promove encontros e conversas para ajudar uns aos outros como podem. Só neste grupo estão cadastradas mais de 450 famílias, onde se encontram muitas crianças com necessidades especiais. De acordo com Antônia não é só o trajeto até a escola que precisa ser melhorado: “É muita dificuldade, e as crianças sofrem ainda mais com isso, né. A acessibilidade, a falta dela, também passa pela falta de monitores nas escolas, muitas crianças precisam e não tem. Também faltam rampas e banheiros adaptados”, comenta a gestora ao lembrar de alguns casos relatados no grupo.
A falta de inclusão pode impactar tanto a vida de uma pessoa, que direitos básicos como a educação e o lazer se tornam escassos. A prova disso é que a Maré é conhecida pela sua diversidade em lanchonetes, bares, restaurantes e eventos culturais como os de teatro e música. No entanto, quando questionados, tanto Jorge Bob’s quanto Maria Antônia só souberam listar como exemplo de lazer um único local: a Vila Olímpica da Maré. Para a moradora da Rubens Vaz é preciso investir em novos espaços: “Praças adaptadas com brinquedos e equipamentos, para que as crianças com deficiência pudessem sair de casa e usufruir do espaço e suas mães ficassem tranquilas. E gostaria que os comércios se preparassem para receber a pessoa com deficiência, porque nós não somos o foco da sociedade, o foco dos comerciantes. Quando eles fazem algo, eles fazem para os que andam. A estrutura em geral precisa melhorar muito, lazer não existe”.
Para algumas pessoas é difícil reparar nestas questões, mas a falta de acessibilidade pode ser encontrada facilmente pela Maré. Ela é vista quando uma pessoa como Jorge Bob’s não consegue ir sozinho ao banheiro de um bar, quando alguém como Maria Antônia depende de ajuda do irmão para não só sair de casa, como também acessar estabelecimentos como lojas e consultórios médicos. Ela também é frequentemente vista quando senhoras como Dona Francisca precisam de apoio de estranhos para subir em calçadas ou adentrar transportes públicos. A ausência da acessibilidade automaticamente ocasiona na falta de inclusão. Afinal, é como diz Antônia Maria: “Quando falta acessibilidade falta liberdade”, mas não deveria ser assim.