Mulheres negras do Rio marcham para Brasília para dizer: existimos!
Marcha das Mulheres Negras acontece na próxima quarta-feira (18) e milhares vão mostram que existem e resistem
Carolina Vaz*
Na próxima quarta-feira, dia 18, cerca de vinte mil mulheres estarão na Marcha das Mulheres Negras 2015, em Brasília. O objetivo é mostrar que as mulheres negras, que estão na base da sociedade brasileira desde a chegada das primeiras escravas, não vão mais ser oprimidas e nem ficar em segundo plano nos movimentos sociais (seja de mulheres, igualdade racial, periferia, etc). Na última segunda-feira (09), membras do comitê impulsor da marcha do Rio de Janeiro falaram sobre o evento e o feminismo negro, no Sindicato de Jornalistas do Município do Rio de Janeiro.
Protagonismo
A marcha vem sendo organizada nacionalmente desde 2011, e traz um protagonismo inédito. O fato é que as mulheres negras estão sempre pautando a igualdade racial como política, mas nunca estiveram à frente do processo. Então o objetivo é fazer uma autoafirmação e para a sociedade: mulheres negras querem ser protagonistas das políticas desse país.
A invisibilidade dessas pessoas nos espaços de poder é um fato que não faz sentido, uma vez que são essas mulheres as principais trabalhadoras do Brasil, sustentando o país, além de serem cerca de 50 milhões em todo o nosso território. Ao mesmo tempo, são as maiores prejudicadas com todas as opressões e violências, como coloca Ana Gomes: “Nós somos a base econômica desse país e vivemos nas piores condições. Seja no acesso à educação, à justiça, à moradia, à saúde. Por isso, a marcha é contra o racismo, contra a violência e pelo bem viver”.
São as mulheres negras que recebem menos salário e estão nos piores empregos, as que mais morrem no parto ou no aborto, moram nos espaços mais insalubres, são mal atendidas nos hospitais e negligenciadas na educação. É por lutarem por condições dignas de vida que elas têm o poder de conquistarem melhorias para todas e todos. “Nós não lutamos só por uma questão nossa. Porque quando nós avançamos numa luta, essa comunidade toda sai ganhando. Não fazemos lutas isoladas.”, expõe Rosilene Torquato.
As maiores vítimas do racismo e do machismo
O racismo no Brasil é sistemático, estrutural e simbólico. Assim explica Ana Gomes: “É estrutural porque a estrutura do país é racista. Sistemático porque os sistemas são racistas: na saúde, na educação, na moradia. Mas justamente o que sustenta isso são as referências simbólicas que foram construídas há algumas centenas de anos atrás. As referências que construíram o simbólico da submissão do negro, como escravo, como sujeito sem subjetividade, que ainda permeia as relações e sustenta o racismo”. Assim, a dona do corpo negro não é sujeito, o corpo é como um objeto, que pode ser desrespeitado de toda maneira. E no caso da mulher, isso se agrava. O direito ao corpo, que o feminismo organizado tanto reivindica, para elas sempre foi uma ausência mais grave. Seus corpos sempre foram usados e violentados.
O movimento feminista não representa as mulheres negras na sua história e, hoje, não as coloca como prioridade. O “direito” das mulheres de trabalhar fora de casa sempre foi, para elas, uma obrigação. Trabalhando, inclusive, na casa alheia, cuidando da família branca, pois a maioria das empregadas domésticas ainda são negras. Seus corpos foram violados nas senzalas, nos quartinhos de família, e são até hoje nos inúmeros assédios e abusos. Segundo Ana Gomes, o feminismo negro até concorda em algumas pautas com a luta feminista, mas ele vem sendo construído desde a África, reclamando os direitos das mulheres e a igualdade, e mostrando a importância da parceria entre elas. Para Clatia Vieira, o feminismo das mulheres negras é o que vai dar valor à sua beleza, ao mesmo tempo desconstruindo a ideia de que são sensuais e servem para o prazer. Porque o corpo delas só a elas pertence.
É importante lembrar que as mulheres negras são, em sua maioria, chefes de família. Isso, além de provar toda a sua força, significa que elas sofrem com as maiores perdas da sociedade, que são os jovens negros homens. No Rio de Janeiro e em todo o país, eles são as maiores vítimas da violência, inclusive pelo “braço armado do Estado”, a polícia.
Clatia Vieira expõe a situação da mulher negra nas famílias: “A gente já se torna a referência da família desde muito cedo. Sempre tem a história da mulher negra que teve que sair da escola porque precisava tomar conta dos irmãos, seja porque a chefe da família era a mãe e não conhecia o pai, ou porque o pai abandonou o barco, enfim. São mulheres extremamente guerreiras mas extremamente oprimidas”. Ela conta, também, que quando uma mãe negra perde seu filho, ela muitas vezes precisa largar sua casa, que já não pode sustentar, e pode chegar a perder o emprego e ter que tirar outros filhos da escola. Porque se o filho foi preso ou assassinado como “bandido” ou “traficante”, o preconceito repercute em toda a família. “Ela perde tudo”, resume.
Também a mídia colabora para a construção dessa imagem. No jornalismo (televisivo, principalmente), negros são a principal imagem de criminosos, e na ficção estão sempre em papeis subalternos, mas nunca em situações extremas que possam causar indignação. A mídia coloca a mulher preta como empregada, mas não como catadora de lixo, por exemplo. Não coloca a sua realidade, não fala seriamente do racismo e isso faz a população acreditar que o racismo não existe no Brasil.
Estética, empoderamento e racismo
Ultimamente, muitas mulheres negras têm deixado de alisar seus cabelos, assumindo seus blacks, crespo, cacheado, etc. Os homens também têm deixado o black crescer. Esse é um movimento de empoderamento, de deixar que o corpo seja como é por natureza, e modificar como se realmente deseja, confrontando os padrões de beleza que consideram belo o cabelo feminino liso e o cabelo masculino cortado.
Mas o racismo é tão cruel que, qualquer que seja o corpo que a mulher negra tem, ele vai ser julgado. É o que explica Rosilene Torquato: “O cabelo relaxado, trançado, alisado, black, turbante… não é isso. Sem bunda, com bunda, peitão, sem peito… tudo incomoda. A nossa cor, nossa pele, nosso sangue. Tudo incomoda essa sociedade. O nosso estudo, ou morar na zona sul, ou na favela… tudo incomoda. Porque eles fizeram uma política de embranquecimento que coloca as mulheres negras à margem dessa sociedade. Embranquecer a sociedade ainda é um projeto.”
Espaço de poder
Para Clatia Vieira, é uma marca do racismo o fato de as mulheres negras só ocuparem, na política, espaços de igualdade racial, como se a elas só coubesse esse tema. “Somos competentes para ficar na Comunicação, na Fazenda, na Educação, na Saúde. Tem que ter mulher preta e homem preto em qualquer lugar. Se não, os projetos políticos vão ser sempre capengas”, expôs. E mesmo assim, os órgãos de igualdade racial são sempre precarizados: faltam verba, estrutura e poder de decisão.
Diversidade e união
A Marcha começou a ser organizada há mais de um ano, no estado do Rio. As mulheres circularam por diferentes territórios, percebendo as demandas locais. Elas são dos movimentos de favela e periferia, igrejas e outras religiões/espiritualidades, quilombolas, e outras. É por isso que esta será a Marcha das Mulheres Negras contra o Racismo, a Violência e pelo Bem Viver. Cada mulher tem as suas necessidades para o bem viver.
Segundo Clatia Vieira, o objetivo é que nenhuma mulher “vá por ir” a Brasília: “Nós vamos levar mulheres militantes, vamos levar mulheres que estão chegando agora e mulheres que estão curiosas. São dois processos: primeiro você se descobre mulher, e depois se prepara para se descobrir como mulher negra. Isso não é qualquer coisa, não se dá do dia para a noite. As mulheres vão chegar lá, vão ouvir falar das pautas das mulheres negras, e vamos voltar e começar o trabalho”. E este não será um trabalho fácil, pois estas militantes têm seus compromissos cotidianos – como trabalho e família – e não podem se dedicar integralmente ao movimento, diferentemente de outros movimentos que recebem dinheiro para agirem.
Rio de Janeiro pauta a Diversidade Sexual
O estado do Rio ditou a regra para a Marcha de pautar a diversidade sexual e de gênero, especialmente lésbicas, travestis e mulheres trans negras. Segundo elas, isso é importante, primeiro, porque essas mulheres sofrem muito preconceito e são constantemente violentadas por conta de suas identidades, e também porque a comunidade LGBT é branca e dominada por gays homens, portanto sempre deixa de lado a discussão de raça e gênero.
Para as mulheres negras, a mudança é para ontem. Porque não é aceitável que haja tantas mulheres morando nas ruas, procurando comida no lixo. Não é aceitável que elas estejam nas piores condições de vida nas estatísticas e na realidade, sejam maioria na pobreza, na exclusão, e minoria nos espaços de poder. Segundo Clatia Vieira, a prioridade da Marcha é para as mulheres mais oprimidas na sociedade: as empregadas domésticas, catadoras, jovens, evangélicas, moradoras de favelas. E elas não têm nada a perder: “Para quem resistiu a porão de navio negreiro, senzala, situação de rua e favela, o que vier a gente traça”.
Saiba mais:
Página Mulheres Negras do RJ na Marcha 2015
Dossiê Mulheres Negras – retrato das condições de vida das mulheres negras no Brasil
Jovens negras do Brasil e a transmissão geracional do racismo e da desigualdade
Mapa da Violência 2015 – Homicídio de mulheres no Brasil
* Com informações das participantes da coletiva de imprensa: Rosilene Torquato, Clatia Vieira, Ana Gomes, Ruth Salles, Marcele e Regina Gonçalves.