Nem Todo Filho Vinga: Um teatro de denúncia
Crítica: Nem Todo Filho Vinga
Por Matheus Frazão
Ator, estudante de licenciatura em Teatro na UNIRIO e Arte-Educador no Museu da Maré.
Me pego pensativo em como iniciar o texto que percorrerá as próximas linhas, me indago que o espetáculo Nem Todo Filho Vinga se propõe a adentrar em múltiplas discussões. Renata Tavares é a encenadora do espetáculo, essa incansável mulher que trabalhou arduamente com a dedicada Cia Cria do Beco. Afirmo ser um teatro de urgência, que faz um convite sincero, pé no chão, olho no olho e que atravessa as marés que se materializam no galpão do Museu da Maré. Quem assina a dramaturgia é o querido Pedro Emanuel, com a colaboração da Cia Cria do Beco. Ainda me desloco em falar do grupo e não da obra em si, compreendendo que esse coletivo está escrevendo sua história no palco do Teatro Preto e do Teatro Favelado, o que devemos reivindicar nas pautas da contemporaneidade, senão as nossas urgências coletivas?
Acompanhei pelas redes sociais o movimento do grupo nas divulgações, dando entrevistas para as mídias comunitárias da Maré e de fora dela, para a mídia de grande massa; o carro de som passando pela favela, anunciando a estreia do espetáculo; o famoso boca a boca; o banner convidativo na fachada do Museu, sendo espiado por olhares curiosos; os storys pedindo a colaboração de doações. Acompanhei, também pela tela do meu celular, os atores, a direção, a técnica, todo o corpo que acredita que todo filho vinga, saindo do ensaio de madrugada. Evidentemente um teatro feito na garra, é preciso querer muito contar essa história. De cá, a peça ainda reverbera que é necessário muita luta para expelir as dores atravessadas por séculos de exploração, é inadiável sermos protagonistas das nossas histórias, já dizia o samba-enredo da Mangueira de 2019:
“Brasil, meu nego
Deixa eu te contar
A história que a história não conta
O avesso do mesmo lugar
Na luta é que a gente se encontra”
O espetáculo Nem Todo Filho Vinga é fruto de uma experiência que reverbera muitas reflexões. O grupo foi vencedor, no ano de 2019, do melhor esquete do 9° FESTU – Festival de Teatro Universitário. Me recordo de vê-los muito empolgados em querer tocar o projeto para frente, contudo, a pandemia assolou o mundo e também o projeto inspirado no conto de “Pai contra mãe”, do escritor Machado de Assis. A peça foi encubada com esperanças que esse filho, em algum momento, fosse nascer.
Nesta altura do texto, o feto já está se formando e, daqui, penso na experiência que vivi como espectador e que preciso escrever, pois o filho já está a nascer. Entretanto, enquanto essa criança está se desenvolvendo aqui e agora por essas palavras, torno a falar da assertiva escolha de terem como ventre para dar luz a esse teatro de denúncia, o vistoso Museu da Maré. O espaço do Museu, além de ser palco para os ensaios e sala de parto desse tão esperado filho, é um lugar que dialoga com a peça à medida em que se encontram no campo político. Ambos falam de suas memórias, ambos resistem, ambos são protagonistas de suas histórias, falamos em linhas gerais do direito à cidade, à memória, de ter a comemoração da vida como ato político, em um país tão saqueado e abandonado pelas autoridades públicas. É no tempo da fé que a conversa com o Machado de Xangô se entrelaça, é nessa imensa linha de vivências que tecemos as histórias, ora contada pela exposição, ora verbalizada pela peça.
Ao entrarmos no teatro, os elementos de composição da obra se fazem presentes, inicialmente, na estética da cenografia, levando os espectadores por um caminho que lembra um beco, onde vemos amontoados de roupas e emaranhado de fios. Do lado esquerdo está uma pintura de Marielle Franco, cria da Favela da Maré, onde se mostra destemida, o quadro é da artista Marcela Cantuaria. Do lado direito uma instalação com pinturas que valorizam a cultura negra, as telas são das artistas plásticas Leona Kalí e Milena Vital. Conforme nos aproximamos das cadeiras, ouvimos a cantoria, típica dos fins de semana das favelas cariocas. Dois suportes de ferro com um tecido de voal cintilante causam uma penumbra nos atores, o pagode está tocando e a esfera cênica é leve e descontraída. Os atores ao se mostrarem revelam um cenário e figurino intimista e despojado, respectivamente, no cenário, aparecem mais elementos que reafirmam a estética do espetáculo, como a placa da Marielle Franco e os discos de vinil da cantora Alcione e do cantor Bezerra da Silva.
Brevemente, conseguimos ver que toda a euforia é por conta da comemoração do mais novo ingressante da Faculdade de Direito: Maicon, personagem protagonizado pelo ator Jefferson Melo. Evoco novamente a comemoração como, também, um ato político. Todos no palco estão muito felizes pela conquista do amigo, o retrato da cena é atípico, pois jovens pretos e favelados são endereçados ao descaso por parte do estado, assim como cita Machado na obra “Pai contra mãe” em sua linha final: “Nem todas as crianças vingam”. Maicon estar na posição de graduando de direito em uma federal é, em alguma escala, fazer vingar. A dramaturgia tem seu fio narrativo conduzido pelas provocações do conceito de justiça, trazendo reflexões dos limites e parcialidades por parte do judiciário brasileiro e sua estrutura burguesa.
Na cenografia da peça têm um semicírculo vermelho que delimita o espaço dos atores. Existe um jogo cênico muito interessante e ágil dentro desse limite que é muito pequeno, a direção de movimento é dinâmica, não deixando escapar a atenção do espectador, o jogo estabelecido é bem executado no espaço, não há estagnação. A movimentação dos atores revela a grandeza que o espaço tem, me senti aquilombado, pois venho da cultura do samba, do funk, e não tem como não haver identificação, a proximidade com a narrativa é inevitável, você se sente pertencido. Sem titubear, digo que toda a estética poética que me referi até então nem sempre esteve presente nos palcos do Brasil, e quando essa poética se aproxima, o teatro se reafirma enquanto linguagem múltipla, vemos uma plateia entrosada e disposta.
Toda a festividade que se constituía no primeiro ato é interrompida de forma agressiva e abrupta, momento expressado por uma trilha sonora ensurdecedora ecoada por um tiroteio e uma iluminação que lhe colocava em uma situação vulnerável. A luz circundava todo o galpão como se fosse um helicóptero sedento em busca do seu alvo. Todos esses elementos me transportaram para a experiência real que já vivenciei na favela da Maré inúmeras vezes. Em dado momento, eu fechei os olhos, porque era agoniante aquela situação, e entendia que aquilo ultrapassava o fazer teatral e se estabelecia de forma real na vida dos moradores de favela. Vi pessoas que não eram do território em choque vivenciando aquela cena e, sem dúvidas, é para estar em choque. Afinal, por que as favelas e periferias seguem marginalizadas? O que se pode ou não fazer dentro de um território favelado? Quem elege as ações de segurança pública nesses lugares? Quem é consultado na construção dessa política pública?
Ao cessar o tiroteio, a dramaturgia indica o envolvimento de Carlão, personagem do ator Ramires Rodrigues, no tráfico, causando uma insatisfação em seu melhor amigo Maicon. É o primeiro conflito entre os dois personagens, essa é a faísca que sucederá uma série de atritos nos próximos atos.
Após o primeiro ato, o palco se desloca, os atores interagem com o público, realocando-os e indicando onde devem posicionar suas cadeiras, transformando o palco em um teatro de arena. À medida em que o espaço vai se transformando, os atores vão traçando linhas no chão, desenhando o mapa da Maré com todas as comunidades existentes. Agora, os espectadores acompanham o espetáculo de pontos diferentes, em uma das duas vezes que vi, sentei em lugares distintos e pude perceber algo sutil, que eram as plantas: me lembro de ter visto arruda, comigo-ninguém-pode e espada de São Jorge, plantas comuns aos ritos das religiões afro-brasileiras. São os pequenos detalhes que vão nos direcionando e mostrando que toda a construção cênica também é parte de um ritual, é a evocação e reafirmação da cultura afro no Brasil.
Ao decorrer do enredo, uma esfera tensa vem sendo descortinada, onde me vejo confrontado novamente. Maicon já ingressou na faculdade de direito e encontra adversidades, a sensação que me causa é a do não pertencimento no espaço acadêmico, visto que direito é um dos cursos mais elitizados na academia. Não há identificação com os colegas de classe, não há acolhimento, Maicon se sente coagido, nega de forma envergonhada o local de onde vem ao dizer que mora em Bonsucesso, bairro vizinho da Maré. Confronta-se com os ideais cristãos, momento narrado em um diálogo com sua prima Hellen, papel da atriz Camila Moura. Maicon a questiona do porquê colocar Deus em tudo, visto que existem respostas lógicas para as mazelas sociais que vivemos, provocando-a de modo que nos faz refletir que nem tudo é da ordem divina.
Em um coro muito bem orquestrado, os personagens comentam o quanto Carlão ascendeu dentro do tráfico e que agora era uma figura respeitada no território. Os cordões de ouro, as roupas de marca e o porte de fuzil, trazem uma imagética de quem se consolidou dentro do movimento, consequentemente, afastando-se dos amigos com quem, no início da peça, comemorava. O Brasil vive em um aborto induzido de tantos filhos que trilham o descaminho da desigualdade, de longe é o caminho mais fácil e saudável de seguir, porém, é a oferta que cativa, aliás, a quem interessa a guerra às drogas?
Wallace é o personagem representado pelo ator Anderson Oli, ele suscita em diálogo com a personagem Claudia, vivida pela atriz Natalia Brambila, que ao procurar um curso de web designer o atendente o informa que só há curso de frentista. Esse momento não pode passar despercebido, pois toca em um ponto delicado e subjetivo que é a capacidade de sonhar. Quando alguém lhe direciona para longe dos seus sonhos, te afirma que existem limites. Não há problema em ser frentista, todavia, existe uma estrutura de poder que nos coloca em caixas estigmatizadas, dizendo o que podemos ou não fazer. É nesse caminhar que a peça vai tratando de diversos assuntos, crianças abastadas são treinadas desde muito cedo para exercer o que quer que seja, pode a criança da favela sonhar?
No desenrolar da peça as urgências não param. O espetáculo encontra respostas poéticas para satirizar locais da zona sul do Rio de Janeiro e de outras cidades do Brasil, cantando: “A Maré não é Leblon, a Maré né Ipanema, a Maré né Botafogo”, e etc. Esse momento é protagonizado de forma jocosa pela personagem Hellen e Digão, vivenciado pelo ator Zaratustra, embalados por um ritmo de criticidade inexiste a possibilidade de não concordância com os versos simples e provocativos que é esse cântico. As incursões atrozes ocorrem nas favelas e periferias, parte da cidade é respaldada pelo poder público, de longe a Maré seria Leblon. Existem “N’s Rio de Janeiros” e ambos são encarados em dinâmicas distintas, qual é o Rio de Janeiro que está em guerra?
Uma informação que corre na peça e causa desconforto na trama é a agressão sofrida por Digão; ao infringir as regras ditadas pelo tráfico, ele sofre duras consequências, causando muita preocupação em seus amigos e mais raiva por parte de Maicon a Carlão. Em meio ao caos que os acontecimentos se encaminham, a direção da peça encontra uma resposta poética e ancestral para Maicon e Carlão. No centro do palco eles jogam capoeira e voltam à memória da infância, relembram os tempos de pipa e dão lugar à liberdade de ser criança.
A cena que se sucede é a descoberta da gravidez da personagem Claudia. Maicon e Claudia avaliam que não há condições em continuar gerando a criança e especulam o aborto, a personagem Hellen se mostra contrária à decisão, mais uma vez colocando a ordem religiosa como fator principal. Quem é que escolhe afinal quem morre ou quem nasce? Quem detém poderes sobre os corpos dos outros? Não é e nem será de uma ordem divina, é da ordem do poder de escolha da mulher; o valor para fazer o procedimento de forma segura está avaliado em 3.000 reais, outra notícia trazida por Digão é que estão oferecendo 5.000 de recompensa pela entrega de Carlão. Maicon se indispõe a entregar o amigo e também recusa a ajuda em dinheiro de Carlão para realizar o procedimento.
Diante de tantos imprevistos e problemas sucessivos é que Maicon adoece, a performance do ator Jefferson Melo no final do espetáculo é grandiosa, vejo o retrato de tantos jovens negros imprimidos naquele corpo que está adoecido, que quer dar conta de tudo, mas não consegue, que é insatisfeito com as injustiças e acaba fomentando aquela dor de forma involuntária. Se na obra de Machado o filho de Arminda não vinga, o grito-manifesto do final do espetáculo Nem Todo Filho Vinga é entoado a fim de reverter o curso da história, afirmando que TODO FILHO VINGARÁ!!!
Um teatro musicado, de urgência, de garra, de histórias reais em um mundo infelizmente real e cruel. No fim os atores se despem dos personagens e se identificam com nome e localidade, e em suas palavras resistem os corpos negros, resistem os corpos favelados, resistem os corpos LGBTQIA+. A peça é um convite para a reflexão, para a luta, para que tenhamos plena consciência de que esse presente é reflexo de um passado sombrio, que continua matando todos os dias a esmo nos lugares marginalizados, legitimado por uma justiça punitivista e burguesa.
Não posso deixar de mencionar a todas e todos que fizeram esse espetáculo vingar de forma majestosa, a mim cabe memorar cada um que, em sua força e dedicação, têm feito das apresentações dias memoráveis de lutas e resistências!
A peça Nem Todo Filho Vinga continua em cartaz. No dia 07 de abril, acontece uma apresentação especial no Colégio Estadual Bahia e CEJA-Maré, às 19h30. Nos dias 09 e 10 de abril, apresentação normal no Museu da Maré, às 19h30. No dia 13 de abril o grupo se apresenta no CEASM, na programação do CPV-CEASM, às 19h30. E os dias 16 e 17 de abril são as últimas apresentações, no Museu, às 19h30.
Ficha técnica:
Elenco: Anderson Oli, Camila Moura, Jefferson Melo, Natália Brambila, Ramires Rodrigues, Yuri Domingues (sub) e Zaratustra
Encenação: Renata Tavares
Dramaturgia: Pedro Emanuel com colaboração da Cia Cria do Beco
Direção Musical: Renata Tavares e Zaratustra
Preparação Corporal e Movimento: Gabriela Luiz
Figurino: Tiago Ribeiro
Equipe de Iluminação: João Gioia, Lucas da Silva e Raimundo Pedro
Cenografia e Arte Gráfica: Flávio Vidaurre
Fotografia: Thiago dos Santos
Operador de som: Edson Martins
Assessoria de Imprensa: Ana Linhares Isabel Ludgero
Produção: Cia Cria do Beco
Assistente de Produção: Sheilla Cintra
Assistente de Figurino: Lucas de Souza
Assistente de cenografia: Rafael Rougues
Produção e Produção Executiva: Vanessa Greff