O busão e as favelas do Rio de Janeiro

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Por Carlos Gonçalves

Quando criança, era mais comum ônibus circular pela Maré. No Conjunto Esperança (uma das favelas da Maré), por exemplo, minha mãe cansou de pegar durante muitos anos o antigo 484,  na época em que seu ponto final, no turno da manhã, era lá. Esse 484, que levava muita gente para trabalhar na zona sul, era algo verdadeiramente épico. As relações de convívio eram tantas que com o decorrer do tempo fiz amizade com o motorista, cobrador (naquela época ainda existia), o fiscal e uma galera. Para você ver como era algo único, em aniversários ou datas comemorativas, era nesse 484 que comemorávamos. Com direito a bolo, enfeite com balões azuis, refrigerante e muito mais. Ficava impressionado como aquele povo, mesmo indo pro trabalho, transformava a chegada e a ida em uma verdadeira festa.

Outro ônibus clássico, nesse mesmo período, era o 919. Esse, por sua vez, circulava o dia inteiro, sobre uma senhora extensão na favela. Na época dos brizolões (eu deveria estar na minha quarta série), fazia questão de pegá-lo para olhar da janela o povo, não curtia ficar gritando, o meu negócio mesmo era olhar essa gente toda, andando de um canto ao outro. Naquele momento, nem percebia a precariedade que era o transporte público. Na verdade, o que me intrigava mesmo era as possibilidades afetivas que aqueles transportes proporcionavam.

O tempo foi passando e os transportes públicos, que em algum grau dialogavam com os espaços favelados, foram gradativamente sendo retirados. Mudanças de linha, a dupla função do motorista, aumentos absurdos da passagem são alguns dos efeitos dessas mudanças. Se repararmos bem, o transporte público (nesse caso destaco o ônibus, já que é responsável por 72% do deslocamento do carioca, segundo a prefeitura)  foi sendo, pouco a pouco, transformado em um verdadeiro monopólio dos interesses de poucos. Sua sofisticação foi tanta que se consolidaram no formato que vemos hoje: máfia.

Repare que para ser máfia alguns pontos devem ser obedecidos, são eles:

” 1. Modelo claro de governança: as decisões respeitam a uma hierarquia de comando entre os agentes.
2. Atividades operadas de forma oculta: devido à natureza criminosa das atividades, boa parte das  ações demanda sigilo e são executadas na clandestinidade.
3. Fachada de legalidade e rede de influência: a principal característica de uma máfia decorre da necessidade de manter relações estratégicas com o poder público e o mercado legal.
4. Organização para o desenvolvimento de atividades criminosas.”

Todos esses pontos a Federação das Empresas de Transportes de passageiros do Estado do Rio de Janeiro (FETRANSPOR) cumpre sem dar margens para dúvidas. Vários esquemas da família Barata (principal família que comanda a FETRANSPOR) são sabidos na boca do povo, desde o aumento abusivo das passagens (de uma ordem  acima da inflação) até mesmo o superfaturamento na bilhetagem eletrônica (legado da gestão Eduardo Paes). Contudo existe um, de todos, que mais me escandaliza, o “esquema da garagem”.

A FETRANSPOR, para garantir um sobrelucro das empresas, contratou uma empresa que não fazia parte da concessão, na qual quem comandava era o mesmo grupo. Foi o caso da VIAÇÃO NOSSA SENHORA DAS GRAÇAS S.A. e a empresa VERDUN EMPREENDIMENTOS IMOBILIÁRIOS S.A. A empresa  VIAÇÃO NOSSA SENHORA DAS GRAÇAS S.A. alugou as garagens da empresa VERDUN EMPREENDIMENTOS IMOBILIÁRIOS S.A. para guardar os seus ônibus, o que seria pago com o dinheiro público da concessão que a FETRANSPOR “ganhou”. Só que, qual é o grande detalhe? Ambas são da família Barata: a primeira está sob a assinatura do Jacob Barata e a segunda sobre o Jacob Barata Filho. Ou seja, nada melhor que colocar nas suas despesas o aluguel da garagem dos  seus ônibus no qual o dono é você mesmo, com o único objetivo de obter um sobrelucro sem levantar grandes polêmicas.

Esse é um dos exemplos, de muitos, que seria o suficiente para colocar esse grupo atrás das grades, coisa que a última CPI, como de costume, deixou claro que não iria acontecer. Depois de muita luta, por uma vitória de 3 a 2, a Câmara dos vereadores aprova um relatório final, nesse 2 de Abril, digno de ser chamado de pizza, já que mesmo com todo um conjunto de materialidade ninguém foi responsabilizado. O que comprova por si só que essa máfia, que comanda o Rio de Janeiro já há algumas décadas, ainda não teve o seu poder nem sequer tocado.

A luta por um transporte público que nos permita de fato nos deslocar está intrínseca ao combate de pautas antigas e fundamentais como o racismo e a desigualdade social no país.

Segundo uma pesquisa do IPEA, “em média o brasileiro gasta 19,8% da sua renda com transporte, sendo 2,5% com transporte público. Quem tem uma renda familiar acima de R$ 17.821,623 (os 10% mais ricos da população) gasta 13,8% da sua renda com transporte, sendo 0,7% com transporte público. Quem tem uma renda familiar abaixo de 872,075 (os 10% mais pobres da população) gasta 21,8% com transporte, sendo 10,3% com transporte público”. Também é importante lembrar que o direito ao lazer, ao trabalho, à cultura, à educação, entre outros, são direitos que estão necessariamente entrelaçados ao direito de se deslocar na cidade. A concentração desses direitos, nas mãos mafiosas da FETRANSPOR, cria uma lacuna cada vez maior entre camadas mais pobres e negras terem os direitos fundamentais da constituição, de fato, cumpridas. Vale lembrar também que o transporte público está desde 2011, pela constituição, como uma garantia fundamental para a dignidade humana. Com tudo isso, a importância da mobilização para que retomemos as ruas contra esse grupo é uma pauta importantíssima, com ela carregamos a difícil tarefa de promover essa mobilização em conjunto com a palavra-chave que nos faltou até então: organização  (fato que também nos impediu de termos conquistas mais sólidas nas jornadas de Junho em 2013), justamente para que um dia possamos, de fato, transformar essa cidade em uma cidade acessível para o que hoje é classificado por muitos como a “não cidade” (a favela).

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