O Carnaval mareense nas ruas e avenidas
Por Carolina Vaz
Foto de capa: José Bismarck
O ano de 2023 ficou marcado como o retorno oficial do Carnaval, após a total suspensão da festividade em virtude da pandemia, em 2021. Em 2022, no Rio de Janeiro, o Carnaval de Avenida, das escolas de samba, aconteceu em abril, e o Carnaval de rua foi quase ignorado pelas autoridades. Neste ano, no entanto, a festa que os trabalhadores esperam o ano inteiro – inclusive os que querem o feriado para descansar – voltou com tudo, e mobilizou a Maré. Teve Carnaval para todos os gostos: bloco mareense, desfile da escola de samba, baile, e muitos bares abertos.
Bloco Se Benze que Dá inicia as comemorações
Quem abriu o Carnaval para a Maré foi o bloco Se Benze que Dá, fazendo seu primeiro desfile um sábado antes da data oficial da festa, no dia 11 de fevereiro. Concentrando no bar Barraca Azul no Conjunto Esperança, o encontro de amigos começou com uma macarronada, proporcionada pela porta-estandarte Flavinha Cândido, e teve muita maquiagem, escolha de adereços, reencontros e ensaio da bateria. A animação foi uma surpresa para o dono do bar, Maurício da Conceição Pereira, que não conhecia o bloco mas em pouco tempo já estava tocando a caixa. Ele conta que está acostumado a receber grupos no local. “Aqui faz muita festa, sabe? Tem uns aniversários aqui, eu sirvo a churrasqueira, não cobro nada”, contou, destacando que a bebida precisa ser comprada no bar. Portelense, seu Maurício gosta de Carnaval mas diz que agora já não sai para festejar, para preservar a saúde. Mas se for no bar dele, ele aproveita e pede bis: “No ano que vem podem voltar!”
O bloco saiu da rua Manoel Falcão, no Conjunto Esperança, e seguiu pela avenida do Canal rumo à Vila do João, onde fez uma pausa no restaurante Frontera da Villa. Foi nesse caminho que Sônia dos Santos, de 67 anos, acabou “recalculando rota”. Ela estava indo fazer outra coisa mas viu o bloco passando e: “Caí dentro! Eu não sabia, me pegou de surpresa! Era pra eu estar do outro lado, tenho que fazer uns negócios… mas tô aqui”, contou muito animada. Moradora da Rua 18, na Vila, ela afirmou que há muito tempo não via bloco passar na favela, apesar de já terem existidos vários. Assim como seu Maurício, ela já foi mais de sair na Avenida, mas ultimamente prefere ver pela televisão e sai um pouco na rua.
O desfile foi interrompido pela chuva, e do Frontera foi necessário levar os instrumentos de carro até o destino final, e os foliões foram atrás. No Pontilhão, o grupo continuou a tocar, não somente o samba-enredo “Meu ijexá”, de 2023, como sambas de outros anos e outras músicas de Carnaval. Mas a chuva não foi capaz de finalizar o bloco, que tem o nome “Se Benze que Dá” exatamente para dizer que dá pra passar de um lado para o outro da Maré, rompendo as barreiras invisíveis. O grupo estava feliz de fazer o primeiro desfile desde o início da pandemia.
Retomar os desfiles do bloco Se Benze que Dá, na verdade, demonstra o seu compromisso com a luta política do direito de ir e vir dentro da favela da Maré. Essa retomada também vem cheia de memórias, memórias importantes dos debates que a Marielle travou dentro do bloco, e que tinha ali todo o seu momento de alegria, de sorriso, de brincadeiras, ao mesmo tempo em que trazia a luta por reivindicação da melhoria de condições de vida na favela.
Renata Souza, deputada estadual e membro do bloco
Segundo a deputada, o bloco utiliza a alegria, o Carnaval, o riso, para levar para as ruas a luta pelo direito de viver na favela com dignidade, o que mais uma vez se mostrou necessário perante a forte chuva que caiu e os rápidos alagamentos como consequência.
O bloco realiza seu segundo desfile neste sábado (25), concentrando às 13h na praça do Parque União, e segue até o Morro do Timbau.
Gato de Bonsucesso leva a força da mulher para a Avenida
Já no meio do Carnaval, exatamente no dia 20, centenas de mareenses se dirigiram à Avenida Ernani Cardoso, em Cascadura, que foi chamada este ano de Nova Intendente. O destino era o desfile da escola Gato de Bonsucesso, localizada na Nova Holanda, uma das escolas da Série Bronze, que finalmente se encontrava pronta para colocar na avenida a preparação de meses com o enredo “Fé move a Maré do meu Destino”. O dia foi de grande correria na escola, recebendo e entregando fantasias, fazendo os últimos ajustes. Grande parte dos componentes se concentrou, a partir das 22h, nas passarelas 6 e 9 para ir de ônibus até a Avenida. Lá, os últimos preparativos: adesão de novos componentes, entrega de fantasias e sapatos, posicionamento dos destaques nos carros alegóricos.
Esse foi o segundo desfile para Marilene Nunes, contadora de histórias do Museu da Maré, que em 2005 participou da produção de um documentário sobre a escola e depois saiu no desfile. Já para a passista Kátia Deusa, foi a primeira vez. A princípio ela sairia na ala da Mulher Maravilha, mas assim que ela sambou no ensaio da escola foi convidada a ser passista. Além de poder sambar na avenida, ela reconheceu a importância de fazer isso a partir de um samba que enaltece a mulher mareense, e numa escola que tinha entre as componentes mulheres de todos os corpos, idades e sexualidades.
A escola traz mulheres de todos os tipos, como eu mesma, uma mulher travesti, preta, periférica, mareense. É meu primeiro desfile no Gato de Bonsucesso e eu estou muito feliz de já estar como passista, e isso ainda abre oportunidade para outras mulheres trans e travestis estarem se colocando no movimento do Carnaval de avenida.
Kátia Deusa, artivista e passista
Quem estava muito animado para o desfile era um dos compositores, Aldair Diniz, que afirmou ter considerado o samba, em sua concepção, uma forma de poesia para as mulheres. O texto traz a referência de Dona Orosina Vieira, uma das primeiras moradoras da Maré, mas as alas da escola trouxeram outros tipos de mulher mareense ao longo do tempo. “Esse samba tem um recorte temporal. Você fala de um passado, das mulheres que aqui chegaram, até hoje. Quando a gente diz ‘No meu Gato ela é o que quiser’ tem essa proposta do feminismo, de combater os preconceitos do mundo patriarcal e machista. (…) Eu acho que nesse sentido a gente conseguiu também trazer para fora das comunidades que ali há pessoas de bem, com dignidade, trabalhadores… esse samba vai gritar pra sociedade que nós somos isso aqui e não o que vende pela mídia”.
A escola levou para a avenida 14 alas e dois carros alegóricos. A comissão de frente, que executava uma coreografia, representava migrantes partindo para novos destinos. As alas traziam os diferentes tipos de mulheres que já habitaram e habitam a Maré: mães solo, retirantes que vieram do Nordeste, as que carregaram lata d’água na cabeça, as que se formam na universidade. Em várias fantasias havia girassóis, representando a busca pelo brilho do Sol perante os desafios. Enquanto a ala das rezadeiras tinha dezenas de Nossa Senhora da Conceição, no segundo carro vieram representadas as orixás Yemanjá e Oxum. À frente do carro veio Vera Marta Alves, sobrinha-neta de Dona Orosina, que afirmou estar vivendo algo inédito: “Eu jamais imaginei desfilar em qualquer escola, que dirá homenageando a minha tia Orosina… Eu gosto, mas nunca passou pela minha cabeça”.
O presidente da escola, Diego Lucena, expressou a alegria de levar para a Avenida um samba que animou o público: “Foi um desfile muito emocionante, muito bem elogiado”. Ele destacou o bom desempenho da equipe do carro de som, com os cantores e instrumentistas, que para ele foi o de melhor qualidade que o carro já teve.
Depois de todas as alas e da bateria, o que fechou o desfile do Gato na Avenida foi um grande banner com a a frase Salve D. Orosina. O fim de desfile, após muitos aplausos do público que cantava junto, foi um momento de grande festa dos componentes.