O ENEM dos privilegiados

Geral, Opinião

Humberto Salustriano da Silva
Professor da Rede Publica
Pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisas Sociais da Maré – NEPS/CEASM

A realização do Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM, no começo de 2021, é a manifestação mais explícita de que as elites políticas do Brasil jamais irão aceitar pacificamente qualquer traço de avanço na democratização do ensino superior, por menor que ele seja e por mais incipiente que também possa parecer. Obviamente, a própria existência de uma prova de seleção para acessar as universidades públicas se constitui como um evidente instrumento de ratificação das nossas desigualdades educacionais. Até porque o papel de um vestibular numa realidade social marcada por profundas diferenças de classes não tem outra função senão aquela de legitimar disparidades. Entretanto, também não podemos negar que nas duas últimas décadas, a luta de diferentes movimentos sociais materializadas em inúmeras políticas de ações afirmativas conseguiu vitórias importantes no campo educacional e, pela primeira vez, na história das universidades públicas, a homogeneização racial branca de classe média e alta foi posta em xeque nos seus mecanismos de reprodução.

Dentro desse contexto de transformações relevantes, as provas de seleção para o ensino superior – como essas do Exame Nacional do Ensino Médio – vinham sendo encaradas pela juventude periférica como um desafio não mais tão impossível de se superar. Isso porque a força dos movimentos populares e do movimento negro em particular se mostrou e tem se mostrado durante todo esse tempo como um aliado fundamental nos processos de conscientização política dos estudantes pobres, desmitificando a ideia de meritocracia e construindo protagonismos na luta por direitos sociais.

Evidentemente, esse movimento progressista que de uma forma ou de outra tem modificado o perfil do corpo discente das universidades públicas provocou reações contundentes da elite de privilegiados no país. Era inadmissível, afinal de contas, compartilhar o mesmo espaço historicamente elitizado com pessoas de pele escura e moradoras de bairros empobrecidos. Quem era essa “ralé” que de uma hora pra outra achou que não deveria mais ocupar os subempregos mal pagos ou se contentar com o ensino fundamental, ofertados em escolas públicas precarizadas?

Aqueles que sempre se julgaram os protagonistas da História jamais iriam aceitar pacificamente a ascensão de uma classe que não fosse a sua. Por isso, incansavelmente batalharam pelo fim das políticas afirmativas. Por isso, criaram projetos pedagógicos que rechaçaram o pensamento crítico nos espaços escolares. E, por isso, impuseram uma reforma no ensino médio que suprimiu a obrigatoriedade das disciplinas de humanidades, conferindo um caráter de ensino meramente tecnicista e voltado exclusivamente para o mercado de trabalho. Uma série de ações, portanto, que tem tido como finalidade a anulação de todas as formas possíveis de qualquer processo de democratização educacional no país que seja pautado pela conscientização crítica da juventude.

A atual conjuntura política do Brasil marcada por um governo de extrema direita tem sido, nesse sentido, o palco perfeito para que a ação dos ressentidos de mentalidade escravocrata tenha tido um efeito devastador nas políticas educacionais. Não basta mais, por exemplo, o ENEM ser um instrumento de seleção classista. É preciso que seja também uma prova meramente técnica. Não se pode problematizar qualquer questão; abordar temas que reflitam debates contemporâneos à sociedade; e é claro, não se pode jamais contrariar a velha narrativa histórica dos privilegiados.

Todas essas ações podem parecer, em princípio, despropositadas ou até mesmo sem consequências concretas para as políticas de acesso ao ensino superior. Mas uma análise mais detida sobre essas estratégias de governo nos leva a concluir exatamente o contrário. Isso porque é o conjunto da obra que vai ocasionando os efeitos perversos. Quando se impede a formação da consciência crítica já na base do ensino público; quando se incuti nos mais pobres a falsa ideia de que o pragmatismo técnico serve mais do que um raciocínio questionador; ou quando se constrói no imaginário popular que profissões de cunho intelectual não cabem aos trabalhadores comuns, mas apenas a um seleto grupo supostamente preparado para assumir os postos de comando no país.

Portanto, dentro dessa conjuntura política, a prova do ENEM se apresenta tão somente como a consolidação desse projeto de poder. Um instrumento de seleção que vai exigir do candidato um conhecimento extremamente raso do ponto de vista crítico, sem qualquer conexão com a realidade social e repleto de conteúdos escolares que privilegiam basicamente o aspecto da memorização. Ora, historicamente os estudantes das escolas públicas precarizadas do Brasil sempre sofreram com a falta de professores; com disciplinas escolares ministradas pela metade; ou até mesmo com conteúdos escolares que praticamente sequer são apresentados em sala de aula. Realidade muito diferente das escolas particulares que as classes média e alta podem pagar. Escolas que investem exatamente no excesso de conteúdos curriculares; dispõem de estruturas físicas que permitem o estudo continuado e, principalmente, adotam estratégias de treinamento para superar provas de caráter essencialmente técnico e, dessa maneira, acessar a maioria das vagas nas universidades públicas do país.

Todo esse conjunto de fatores no médio e longo prazo tem o potencial de minar gradativamente os anseios da juventude periférica no acesso a educação superior. Pouco a pouco, a autoestima vai sendo desconstruída. As dificuldades de se adequar vão ganhando contornos maiores e, por fim, a propaganda massiva de que a universidade não é o lugar dos pobres vai ganhando mais sentido na vida dos estudantes subalternizados. Daí, o resultado tende a se materializar no maior desejo dos privilegiados: um país cujos governantes se esforçam em aprofundar nossas desigualdades de classe, raça e gênero, mantendo, dessa forma, os velhos grupos de exploradores no poder.

Talvez o ENEM de 2021 tenha sido até agora a maior idealização do que deseja essa classe que durante as duas últimas décadas tanto se ressentiu ao ver seus históricos privilégios ameaçados por políticas públicas minimamente inclusivas. Uma prova que sequer deveria ter acontecido no pico de uma pandemia mortal, mas que o instinto genocida do atual governo fez questão de manter, expondo de maneira criminosa milhões de pessoas em todo o Brasil. Uma prova que obviamente a maioria esmagadora dos estudantes pobres possui probabilidades mínimas de superar, na medida em que praticamente não tiveram aula no ano letivo do ano de 2020. O ensino remoto esbarrou nas realidades precárias de grande parte dos jovens periféricos. E, a internet, raras vezes, pôde ser utilizada pela falta de aparelhos adequados ou mesmo do acesso a uma rede de conexão estável. Realidade essa que não foi vivenciada de uma maneira geral pelas classes de maior capital político, social e econômico. Isso porque, dentro desse grupo, o acesso às aulas por celular e internet rápida não se constituiu como um obstáculo real. Espaços adequados para se concentrar exclusivamente aos estudos e a disponibilidade tempo para praticar exercícios também não se apresentaram como problemas concretos. Portanto, uma situação social em que, evidentemente, a maior parte dos estudantes pobres ficou seriamente prejudicada, em contraposição a outro grupo de jovens que acumulou muito mais ferramentas para se superar esse tipo de ENEM e, por conseguinte, ingressar no ensino público superior sem grandes dificuldades.

Por fim, foram mais de 50% de abstenções (fora os que foram e sequer conseguiram entrar) numa prova que nitidamente se encaminha para ser tudo aquilo que os conservadores extremistas tanto desejam. Um instrumento desconectado com a realidade social do país e sem a proposição de debates públicos contemporâneos que são relevantes para a formação educacional dos brasileiros. Uma prova que não instiga a refletir sobre nosso passado escravocrata ou sobre os períodos de ditadura civil-militar. Uma prova tosca que deliberadamente (não tenho dúvidas) não foi elaborada para se pensar as questões chaves do Brasil nos séculos XX e XXI. Mas ao contrário, apresentou temas de caráter claramente conteudista, eurocentrados e completamente distantes do cotidiano de milhões de estudantes das classes populares. Não por acaso, o pastor ministro da Educação disse que o ENEM 2021 foi um grande sucesso. Afinal de contas, ele cumpriu o que se propôs. A velha elite de privilegiados vai adentrar tranquila nos espaços educacionais que sempre julgou serem exclusivamente seus.

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