Prêmio estimula combate ao racismo
Por Gizele Martins e Thais Cavalcante
O Prêmio Nacional Jornalista Abdias Nascimento tem o objetivo de estimular o jornalismo que contribua para a prevenção, o combate e a eliminação de todas as formas de racismo e de discriminação racial. O Jornal O Cidadão fez uma super entrevista com Sandra Martins, Coordenadora da 3a edição do Prêmio Nacional Jornalista Abdias Nascimento.
O Cidadão: Há quanto tempo existe o Prêmio Nacional Jornalista Abdias Nascimento?
Sandra M: Esta é a terceira versão. A primeira edição aconteceu em 2011 e a segunda em 2012. É uma iniciativa da Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro. E conta com o apoio das co-irmãs em outras entidades sindicais – Alagoas, Paraíba, São Paulo, Distrito Federal, Mato Grosso, Bahia (Diretoria de Relações Étnico-Raciais) e Rio Grande do Sul (Núcleo de Jornalistas Afro-Brasileiro).
Estes coletivos buscam, no campo sindical, a inclusão do tema na agenda das lutas da categoria no campo nacional, contribuindo, desta forma, por meio de eventos de fomento ao aprendizado e à capacitação para a compreensão sobre a temática étnico-racial dos profissionais de comunicação, com foco nos jornalistas.
O Cidadão: Como nasceu? Qual a importância dele?
Sandra M: O projeto nasce da necessidade de se desconstruir a naturalização e internalização do racismo na mídia nacional, considerando a insistente representação do negro nos meios comunicacionais. Ela reproduz e cristaliza, sistematicamente, imagens negativas e estigmas que prejudicam profundamente a afirmação de identidade racial e o valor social do grupo.
A construção do projeto foi coletiva com a participação de todos os membros da Cojira-Rio – Angélica Basth, Miro Nunes, Isabela Vieira e Sandra Martins -, mas contamos com apoio da Cojira-AL, DF e do Núcleo/RS. As duas primeiras versões foram coordenada por Angélica Basthi e eu agora com a 3ª. A nossa perspectiva inicial era de que todos deveriam passar pela experiência de gestão de um grande projeto, daí sua gestão ser colegiada.
Abdias – A titulação do prêmio foi uma merecida homenagem ao ativista histórico dos direitos humanos e um dos ícones da luta contra o racismo, o jornalista e ex-senador da República Abdias Nascimento cujo registro na entidade sindical carioca é datado de 1947.
Estimular o jornalismo que contribua para a prevenção, o combate e a eliminação de todas as formas de racismo e de discriminação racial; incentivar a discussão de medidas de combate às desigualdades raciais no Brasil; e integrar conhecimentos da área de comunicação, como o desenvolvimento da criatividade, a capacidade de argumentação, a análise de dados e o domínio da linguagem jornalística. Estes são os objetivos desta premiação, que visa colaborar na sensibilização da sociedade brasileira sobre as desigualdades étnico-raciais.
Parceria – Além de nossas co-irmãs e de nossas direções sindicais, a Cojira-Rio foi buscar parcerias com instituições que têm sensibilidade para grandes projetos no trato das relações raciais. Entre elas, Fundação Ford, Fundação Kelloggs e a Oi. Desta forma nos foi possibilitada a concretização do antigo sonho de homenagear o velho mestre. Todas as versões foram lançadas no auditório do sindicato, quando convocamos jornalistas, mídias comerciais ou não, e a sociedade civil. E a cerimônia de premiação se dá no Teatro Oi Casa Grande, quando levamos para o Leblon personalidades que abraçam a discussão do combate ao racismo e lutam pela promoção da igualdade racial.
Pesquisas – Várias pesquisas vão ao encontro das aspirações do Prêmio Nacional Jornalista Abdias Nascimento de fomentar a produção de conteúdos jornalísticos sobre temas relacionados à população negra – premiar uma cobertura qualificada. Pesquisa da ONGADI (Comunicação e Direitos) conclui que a cobertura da mídia nacional separa racismo e violência. O trabalho analisou as coberturas realizadas por cinco jornais diários de circulação nacional e 40 de abrangência regional ou local. A pesquisa mostra que os jornais impressos discutiram racismo, impulsionados, entre outras coisas, pela ação do movimento social brasileiro e, particularmente, do Movimento Negro, com debate tecnicamente qualificado, embora nem sempre favorável às políticas públicas de combate ao racismo implementadas pelo Estado brasileiro. Além disso, constatou também, uma clara desvinculação entre as violências físicas praticadas contra a população negra e o debate sobre o racismo.
O professor Marcelo Paixão, do Instituto de Economia da UFRJ coordena o Laeser – Laboratório de Análises Econômicas, Históricas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais, na publicação Relatório Anual das Desigualdades Raciais no Brasil comprova que as assimetrias sócio-culturais e econômicas entre brancos e negros pouco se alteraram no Brasil contemporâneo. Nosso país exibe paralelismos maiores do que a África do Sul após o fim do regime de Apartheid.
O Cidadão: Como é feita a escolha dos premiados? Quais os critérios?
Sandra M: No site www.premioabdiasnacimento.org.br, o internauta pode acessar o Regulamento, os critérios de avaliação – entre eles, o de pertinência, criatividade no desenvolvimento da pauta, recorte de gênero –, as sugestões de temas, os critérios para quem pode se inscrever. Conforme prevê o Regulamento, os trabalhos são submetidos a avaliações da Comissão de Pré-Avaliação e de Seleção que identifica as reportagens que obedecem aos critérios exigidos para inscrição; e da Comissão Julgadora que elege os vencedores do Prêmio Nacional Jornalista Abdias Nascimento, a partir dos critérios baseados no Regulamento.
O Cidadão: Como pautar a questão racial na imprensa para além da mídia comunitária, já que as mídias comerciais são as que mais cometem racismo em suas linhas editoriais?
Sandra M: Em primeiro lugar, é importante registrar qual o papel e trabalho da Cojira-Rio dentro do sindicato de jornalistas. Esta comissão é um órgão consultivo e de execução de atividade específica do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro (SJPMRJ). Nossa comissão é composta por Miro Nunes, Angélica Basthi, Sandra Martins, Isabela Vieira e Camila Marins (recém-ingressa).
A sua missão principal na entidade sindical é lidar com as questões relacionadas a discriminação racial no mundo do trabalho secundado pela educação como elemento propulsor de acesso e promoção profissional. Esta comissão faz um acompanhamento crítico do noticiário relacionado à questão racial; procura estimular o aprendizado e a capacitação dos profissionais de comunicação, especialmente os jornalistas, de modo a compreenderem com maior profundidade o tema que dá nome à comissão; promove palestras e debates com temas relacionados à comunidade afro-brasileira; produz conteúdos inerentes ao temário desenvolvido pela Comissão; e procura apoia pesquisas acadêmicas ou não na área de Comunicação Social que privilegiem as discussões sobre diversidade étnico/racial.
São desenvolvidas várias estratégias que visam sensibilizar os profissionais de comunicação e os veículos. As co-irmãs promovem debates, participam de congressos e audiências, enfim, trabalham no campo político a defesa da temática racial. A Cojira-Rio, além das ações acima elencadas, ao longo de seus dez anos no Sindicato carioca, promove, anualmente, um seminário próximo do dia 10 de dezembro, data comemorativa da assinatura da Declaração dos Direitos Humanos pela ONUL. Neste evento são convidadas instituições da sociedade civil – movimentos negro, de gênero/raça e dos DH – para dialogarem com profissionais do mercado jornalístico e de área de formação acadêmica de comunicação, preferencialmente jornalismo.
A dificuldade de tocar na questão racial não é afeta somente as mídias comerciais. Raramente, outras mídias abordam este tema, não colocam a cor da vítima, não dialogam com os movimentos negros, a não ser quando o racismo é brutalmente visível. Veja, se observarmos os clips de Funk, expressão musical das comunidades negras, verificamos que as dançarinas são mulheres de pele clara e sempre de lisos longos, em geral “louras”. Esta invisibilidade da mulher negra tem que ser questionada, trabalhada, porque como sempre ela é a parte mais fragilizada, mas não tem consciência (ou não quer ter, para sobreviver) de que ela sempre ficará sozinha com os filhos, e muitas até apostando para que seus filhos construam famílias cada vez mais claras, para não sofrerem o que sempre sofreram. Pensamento que emana do quadro A Redenção de Can (1895): avó negra, mãe mulata, esposo e filho brancos. O quadro sintetiza o ideal de branqueamento da população brasileira. Pintura de Modesto Brocos y Gomes.
O Cidadão: O racismo se faz presente todos os dias na vida das pessoas mais pobres do país, já que é uma questão de classe, como combater isto?
Sandra M: O racismo não é somente uma questão de classe. Caso contrário, não teríamos a sistemática assimetria ou paralelismo entre brancos e negros (pretos+pardos=IBGE) e a invisibilidade da diversidade étnico-racial em toda a cadeia produtiva e de comando deste país. As práticas cotidianas e a naturalização da desigualdade são sistematicamente trabalhadas no inconsciente coletivo desde os tempos do Brasil Império, quando se começa a gestar os primeiros esboços de uma nação. Com a chegada da República os negros (pretos+pardos=IBGE) descendentes de escravizados ou não, foram relegados ao ostracismo, ao apagamento de suas identidades, de sua relevância histórica na construção de tudo que chamamos de Nação Brasileira. É ainda idolatrada a entrada de estrangeiros, de imigrantes brancos, preferencialmente, como foi feito ainda no Brasil Império em que se investiu em acordos internacionais para trazer – com benefícios – europeus brancos e pobres para trabalharem no país que mudaria de regime. Veja que a instalação de sindicatos vieram com os italianos, o que demonstra que a eles era dada a oportunidade de terem sua identidade e seus costumes preservados. O alforriado não teve a mesma sensibilidade, após quase quatro séculos sendo percebido como semovente ele de uma hora para outa passa a ser cidadão (de segunda classe) com deveres e obrigações. Tal qual os moradores de favelas, que com a UPP passa a ser “cidadão” com direito a Sky e conta de luz.
Até os pretos e pardos que já eram livres, com a chegada dos imigrantes, foram alçados à marginalidade. Também não muito diferente do que ocorre hoje, quando para uma vaga de emprego – não importa o nível desta vaga – se os candidatos tiverem currículos semelhantes, a cor da pele será o divisor de águas.
Ou seja, o racismo e o preconceito racial estão cada vez mais fortes, e é na disputa é que estes conceitos ficam evidenciados.
A Carta Magna da Educação, LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação – teve artigo alterado pela Lei 10.639 e 11.645 que obrigam a inclusão no currículo escolar a história do negro (não só a imagem de Rugenda em que um negro açoita outro negro, mas não contextualiza o porquê o PM negro barbariza o favelado ou universitário negro) e da história da África (geralmente dada em pouco mais de duas aulas). Esta lei é transgredida cotidianamente, pois as pessoas têm dificuldade de olhar para dentro de si mesmo e se questionar sobre que padrão é este que aceitamos, que determina que uma novela de TV pode ter em seu casting de atores somente dois negros subalternizados.
Naturalizamos que o racismo é focado nos pobres, mas se assim for, fortalecemos que não há necessidade de termos políticas públicas focalistas, já que todos temos negros na família. Mas na hora de aceitar o profissional capacitado, sendo negro ou negra, a preferência será para o branco ou pardo claro. Desta forma, perpetuamos o abismo entre negros e brancos. Quando trato da saúde da população negra, estou tratando da saúde de mais de 60% da população brasileira, estou assumindo que há estatísticas que comprovam as altas taxas de morbidade materna. Mulheres pretas que são mal atendidas, cuja angustia elas aprenderam a engolir.
Enfim, o Prêmio Nacional Jornalista Abdias Nascimento é uma provocação que fazemos ao produtor de conteúdo jornalístico de que ele/ela pode ser sensível e se engajar no combate às desigualdades raciais no nosso país. Fico muito honrada de poder ter participado da construção e realização deste grande sonho. Mas, certamente, outras realizações virão.
One thought on “Prêmio estimula combate ao racismo”
Quando se fala de discriminação racial não podemos fechar o tema somente em comunidades favelizadas. Não é verdade. O racismo atinge a tod@s @s pret@s. Claro que o grau de letalidade variará conforme o local em que o fato for ocorrer. Não será comum atirar para depois perguntar se o sujeito estiver na Zona Sul, mas poderá ocorrer dele – mesmo bem vestido – demore a ser atendido numa loja de grife (ou atenderão rapidamente para que saia logo, e certamente vão dizer que aceitam variadas modalidades para pagamento à crédito desde que apresente os documentos…), ser preterida numa vaga de secretária de diretoria porque é escura demais. Na creche particular, onde só tem bonecas brancas e a negra é a “nega maluca”. Sem contar ao ligar a TV cujas novelas em 90% os protagonistas não são negros, em geral bandidos e empregadas domésticas.
Este prêmio realmente é uma forma de fazer o sujeito pensar diferente no seu dia-a-dia de produção de conteúdo. Parabéns. A entrevista foi uma verdadeira aula.