O primeiro livro da vida: projeto une estudantes de EJA para leitura compartilhada
Por Carolina Vaz
Foto de capa: Ana Cristina da Silva
“Vou te falar uma coisa: é o primeiro livro que eu estou lendo na vida, aos 52 anos esse é o primeiro livro que eu estou lendo”. Verônica Gomes, moradora do Morro do Timbau, mostra emocionada seu primeiro livro: Olhos d’Água, da escritora brasileira Conceição Evaristo. É o primeiro porque faz somente dois anos que ela retomou os estudos – paralisados quando tinha 15 – no CEJA Maré, e há menos de um mês começou a participar do projeto “Educação de Jovens e Adultos – Eles Leem”, do coletivo Leituras na Favela. Dá pra dizer que ela é a fã número 1 do projeto: “Essa roda de leitura foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida depois de eu ter voltado a estudar”.
O projeto parece simples: estudantes da EJA se reúnem na Biblioteca Jorge Amado, na Areninha Cultural Herbert Vianna, para fazerem a leitura coletiva de um livro de contos. Os facilitadores dessa interação são os membros do coletivo Leituras na Favela, um grupo que há cerca de três anos realiza atividades de leitura virtuais e presenciais. Porém, além de o momento motivar a leitura em voz alta e compreensão do livro, acontece um debate sobre a história ali conhecida, que é sempre inesperado. No dia da entrevista, exatamente o Dia do Livro, 29 de outubro, o conto foi “Quantos filhos Natalina teve?”. Este que é um dos 15 contos de Olhos d’Água conta a história de uma mulher que, sucessivas vezes, não fica com as crianças que pare. Foi o maior conto lido até agora, o que gerou um pouco de receio no grupo, mas foi muito efetivo em levantar debate. A partir da história, homens e mulheres presentes contaram suas próprias experiências sobre exploração do trabalho, gravidez precoce e até abuso sexual. Ali, pessoas que há um mês nem se conheciam encontram acolhimento para falar de assuntos delicados, motivadas pela leitura.
Segundo Anderson Oli, um dos fundadores do coletivo e facilitadores no projeto, a metodologia envolve utilizar obras em que os leitores vão se identificar com as histórias, vão encontrar nelas suas próprias vivências assim como as de pessoas próximas, refletir e conversar sobre isso. É o que prevê, na verdade, o próprio conceito da autora de Olhos D’Água: “Rolam muitas conversas, principalmente sobre as experiências individuais… o livro também traz essa questão, né, das experiências, das escrevivências da Conceição Evaristo. (…) E essas pessoas leitoras aqui vão trazendo a sua realidade também para o livro, para o debate mesmo”.
Este é o primeiro projeto do Leituras para essa faixa etária – a partir dos 50 anos aproximadamente – e a equipe pensou que, neste momento da vida em que as pessoas estão recuperando seu direito à educação, aprendendo a ler e escrever, a leitura de um livro fora do espaço escolar poderia reforçar essa autonomia. Existe um contexto de acolhimento: os participantes receberam um kit com bolsa e livro, e toda terça-feira o encontro começa com café, bolo, suco, biscoito, um lanchinho para cada um se sentir bem e confraternizar. Em tempos de internet, tela e leitura rápida, o projeto rapidamente esgotou suas 20 vagas: bastaram duas visitas do coletivo às turmas de EJA das escolas CIEP Gustavo Capanema e Escola Municipal Primário Erpídio Cabral de Souza (também conhecida como Índio da Maré). Desde 15 de outubro, ninguém evadiu.
É uma situação diversa do que já aconteceu em outros projetos do Leituras na Favela. O coletivo foi uma iniciativa de Anderson Oli, estudantes de Letras na UFRJ, e a amiga Camila Mendes, e iniciou de forma online em 2021, promovendo a leitura de livros que seriam cobrados no vestibular da UERJ; mais tarde, fizeram um ciclo de literaturas africanas de língua portuguesa, também online. A partir daí, eles começaram a acessar editais com recursos para projetos desse tipo, como o Lab Semente, da Redes, e o edital FOCA. A verba possibilitou executar um projeto com crianças de 5 a 10 anos, com contação de história e brincadeiras, e outro para adolescentes de 11 a 16. Na percepção de Anderson, as diferentes faixas etárias têm níveis variados de interesse pela leitura, e no caso dos mais velhos ele percebe um foco maior na leitura e interesse no projeto em geral.
O conhecimento abre portas
Embora o coletivo tenha preenchido todas as vagas nas duas escolas mencionadas, foi impossível impedir a entrada da Verônica Gomes: ela viu um post no Instagram sobre o projeto e se empolgou, quis logo se inscrever junto com a neta de 16 anos para as duas praticarem a leitura. A neta não poderia, porque não é aluna de EJA, e na verdade nem Verônica poderia, porque já terminou o Fundamental no CEJA Maré. Mas tamanha era sua vontade de participar que a equipe aceitou, e ela não falta, nem que precise trocar turno no seu trabalho como cuidadora de idosos.
O que motivou a Verônica a retomar os estudos foi exatamente uma situação vivida com a neta dois anos atrás: a adolescente pediu à avó ajuda com a lição de casa, mas ela não entendeu a lição para ajudar. “Aí eu fui para o meu quarto e falei: ‘poxa, tá na hora de eu dar uma mudada de chave na minha vida. Vou voltar a estudar'”. Ela se matriculou no CEJA Maré e começou a ter outra experiência de escola: tudo que os professores passavam ela entendia, e Verônica ficava cada vez mais maravilhada com tanto conhecimento adquirido. Na metade deste ano, ela terminou o Fundamental e fez a prova do ENCEJA, que avalia em que nível o aluno de EJA está. Confiante de que não vai precisar cursar o Ensino Médio, seu próximo plano já é fazer uma faculdade de Serviço Social.
“A cada dia que passa, eu entendo que a educação abre portas, ela abre o mundo e com a educação a gente pode chegar onde a gente quiser”.
Para ela, ser uma assistente social vai ser sua forma de tornar o mundo melhor. E para quem deseja retomar os estudos mas ainda não conseguiu, a Verônica deixa um recado: “Aproveite a oportunidade. Você é capaz, sim. Se um dia disseram para você que é difícil, que você não vai conseguir, ou você é um burro, porque muitas pessoas já escutaram isso na vida… não é verdade! Procure, os projetos estão de portas abertas”.
O próximo passo do grupo, agora, é conseguir conhecer a autora do livro que os uniu. No próximo dia 12, o grupo vai visitar a Casa Escrevivências, espaço cultural que homenageia a escritora, e vão levar estandartes feitos em homenagem a ela e sua obra. A expectativa é que eles possam encontrá-la e compartilhar com Evaristo tudo que sentiram lendo Olhos d’Água.