
Travestis mareenses estarão em destaque na Paraíso do Tuiuti
Por Carolina Vaz, com informações de G1 e portal Carnavalesco
Foto de capa: Alex Ferro / Riotur
Qual é o lugar da travesti no Carnaval carioca? Muitas vezes um lugar de exploração sexual que, infelizmente, compõe o imaginário – e a realidade – da chamada “festa da carne”. Mas desta vez será um pouco diferente. A escola de samba Paraíso do Tuiuti, do bairro de São Cristóvão, levará dezenas de travestis para o desfile na Sapucaí, na próxima terça-feira (04/03), com o samba-enredo Quem Tem Medo de Xica Manicongo?. Dentre elas, sete mareenses: Jade Cardozo, Nlaisa Luciano, Gilmara Cunha, Pantera, Ianni, Daniele e também a Secretária Executiva do Grupo Conexão G, cozinheira e empreendedora Fernanda Telles.

Segundo Fernanda, o convite chegou por outra membra do grupo Conexão G, e para ela foi uma surpresa. “Eu nunca desfilei! Mas estou muito confiante, muito contente pelo convite, até pela visibilidade que será dada a todos esses corpos que são sempre excluídos da sociedade”. Com a exceção de Gilmara Cunha, que terá destaque no último carro junto a outras 28 lideranças da causa, as demais mareenses estarão no quarto carro da escola, o Meninas da Lapa, um carro que representaria exatamente as travestis que se prostituem, tendo como um dos pontos de atuação o bairro da Lapa. Mas, para Fernanda, até mesmo esse estereótipo pode ser subvertido: “Eu não vejo só pelo lado da prostituição, eu vejo como uma visibilidade de um olhar para as meninas da Lapa, que podem ocupar e vir a ser de fato o que a sociedade espera que a gente não seja nunca”. E não há maior prova de que as travestis podem ser o que quiserem do que a própria identidade das componentes do desfile. Elas são modelos, professoras, diretoras, jornalistas, pessoas em posições importantes como a própria Fernanda.

Ocupando a Avenida
Para Fernanda, um dos maiores destaques no desfile da Tuiuti não está apenas no samba-enredo, que homenageia a primeira travesti reconhecida no Brasil, mas exatamente ter uma grande quantidade de componentes deste público no desfile. Se outras escolas de samba têm pessoas trans como musa de bateria, na ala das passistas e como componentes em geral, ainda não foi no lugar de destaque e homenagem que isso se deu. “É uma visibilidade para esses corpos que realmente só têm visibilidade à noite, quando são aceitos no meio de uma esquina, no meio da prostituição, que é o que resta na maioria das vezes para a gente”, comenta. Desta vez estarão sendo ovacionadas por um público de até 40 mil pessoas.
Quem tem medo de Xica Manicongo?
O samba da Paraíso do Tuiuti vai homenagear Xica Manicongo, natural do Congo, que por volta de 1591 foi escravizada e trazida a Salvador, onde foi batizada de Francisco e se viu obrigada a performar uma identidade que não tinha. Resistiu, voltando a usar os trajes considerados femininos que já usava no Congo, e acabou acolhida pelos indígenas, com os quais pôde exercer a fé que tinha. Oprimida pela Inquisição, acabou voltando atrás, e como diz a sinopse do samba da Tuiuti, “na luz do dia, lá se via Xica travestida daquilo que não era; enrustida no armário de Francisco. E quando o véu da noite cobria a cidade, lá se ia Xica rodando suas saias pelas brechas das ruas, esquinas, estradas e matos, encantada e zombando”.

A letra do samba contém palavras do Pajubá, linguagem da comunidade LGBTQIA+ utilizada principalmente para travestis conversarem em códigos, a exemplo de “acuendar sem xoxar”, e estas se misturam a outras que referenciam as religiões de matriz africana, como kimbanda e mojubá. Por coincidência ou obra do destino, a própria Fernanda já foi apelidada de Xica Manicongo por uma amiga, e de início não gostou até conhecer a história dela. “Eu fui procurar a história da Xica Manicongo e eu me inspirei, eu passei a ser a Xica Manicongo Telles (…) porque a resistência dessa mulher é a mesma que eu tenho!”.

Aos 40 anos, hoje ela ocupa um cargo de destaque numa instituição e faz sucesso com o Espaço Fernanda Telles com 2Ls, estando sempre cheia de encomendas de doces e salgados. Na parede do espaço carrega a marca do 1º lugar do concurso Comida de Favela 2024. Mas Fernanda já sofreu muita discriminação, violência e negligência, tendo que se virar para sobreviver de modos que ninguém gostaria. Tudo isso por ser uma travesti preta retinta. “Eu fiz coisas que até Deus duvida, para sobreviver em meio a um lugar em que todo mundo me conhece e mesmo assim não me dão oportunidade, só por eu ser quem eu sou”.
Acostumada a não pular Carnaval por estar sempre trabalhando, e no máximo acompanhar o desfile pela televisão, Fernanda carrega grande expectativa pela próxima terça-feira. O convite para desfilar na Sapucaí é mais uma das conquistas recentes de Fernanda após passar por situações cruéis e, infelizmente, comuns para as travestis brasileiras. No dia 04, será pura felicidade. Ela já teve um “gostinho” da emoção no ensaio técnico na última sexta-feira, mas agora não vê a hora de gritar na avenida para 30 mil pessoas: EU TRAVESTI!

“Eu vou descer a Avenida do jeito que eu sou e por ser quem eu sou. Então eu quero muito brincar, quero me divertir bastante, espero que seja muito legal, porque vai ser uma experiência única!”