Você lembra o que foi a Operação Arcanjo?
Por Carlos Gonçalves
Exercitar a nossa memória é sem dúvida um desafio crucial em tempos de intolerância como os de hoje. Uma das poucas armas fundamentais para o combate das desigualdades e a apresentação de uma outra história que seja a contada por um outro olhar, um olhar que não seja dos “vencedores”. Nesse caso pretendo utilizar essa memória para combater a desigualdade que melhor conheço: o racismo. Hoje finalmente assisti à fala do comandante do exército Villas Bôas no programa do Bial, entrevista polêmica onde discutiram sobre o caso do oficial que declarou publicamente que a solução para o atual “caos social” e político que vivemos seria uma intervenção militar. Villas Bôas, o atual responsável pelo exército brasileiro e o oficial que poderia punir o general Mourão (responsável pela declaração), fez conforme manda o script e durante a entrevista defendeu seu subordinado, junto com suas ideias. No que até então não havia nada de novo, entretanto o que surpreendeu a todos foi Villas Bôas ter utilizado para tal o artigo 142 da Constituição para dizer que as forças armadas teriam um “mandato” para uma “intervenção militar” na iminência de um caos, deixando a entender que essa seria não só uma obrigação mas também um “dever constitucional” dos militares.
Um dos legados da nossa recente história da ditadura civil militar foram os artigos 144 e 142 da Constituição. O primeiro trata sobre a segurança pública e as forças auxiliares e reserva do exército (polícia), o segundo trata sobre os atributos da Marinha, aeronáutica e exército. Lá também se coloca que as forças armadas “destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. Entretanto a constituição não detalha em que medida pode convocar as forças federais, tampouco o que seria uma “iminência de um caos social”. Uma clara amostra das tensões que ocorreram na formulação da constituição em 1988, para uma parcela significativa das forças conservadoras, onde estavam inclusos os militares, não agradava a ideia do desmonte da estrutura de segurança nacional, modelo esse consolidado em 1969. Nesse modelo a polícia militar, por exemplo, servia como ponte importante entre o comando do exército e a repressão da população civil que em alguma instância ameaçava a ordem vigente. Frutos disso, permaneceram a polícia militar e os bombeiros como força auxiliar do exército, mas então sob o controle do governo do estado, os detalhes de como se dará a convocação das forças nacionais para possíveis intervenções para manutenção da lei e da ordem ficaram para as futuras leis complementares. Essa lei foi editada apenas em 1999 no governo FHC, contudo seu detalhamento e assinatura só veio na última gestão do Lula em 2010, fundamental para que o então governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, pudesse convocar as tropas nacionais para a invasão do conjunto de favelas do Alemão e Vila Cruzeiro. Na época os efeitos dessa operação e a ausência de clareza sobre a violação de direitos que provocaram colocaram em xeque sua legitimidade. O nome dado a essa operação foi de “Arcanjo”, potencializado pela mídia na época, e foi a segunda maior ocupação militar urbana da história brasileira, perdendo apenas para a ocupação na Maré.
Desde a década de 1990 as forças nacionais sempre foram usadas para garantia de grandes eventos: o épico episódio do tanque apontado para a Rocinha durante a ECO 92, a ocupação provisória das favelas na operação Rio, em 1994, dentre tantas outras, exemplificam as suas utilizações. Contudo a operação Arcanjo foi um marco para o aprofundamento da utilização das forças nacionais, levando à tona o questionamento: a que medida essas ações não impulsionaram uma ampliação da militarização da vida? Essa militarização que teve um efeito direto na vida de grupos historicamente excluídos como o povo negro e favelado. A recente aprovação do julgamento de crimes como o homicídio, cometidos por militares, serem feitos pela justiça militar e não pela civil, mostra mais um efeito colateral desse marco. Tempos difíceis estão se acirrando, dias simbólicos, como os de hoje (dia das crianças), me faz pensar qual será o futuro da nossa juventude negra. A nossa memória esta sendo substituída pelo velho e perverso senso comum, não só nossos corpos estão ameaçados, mas também nossa história.