A Maré em 12 Tempos: livro registra história do maior conjunto de favelas carioca

Geral, Memória

Por Carolina Vaz

“Eles trouxeram suas lembranças, trouxeram suas marcas do Nordeste, vários elementos da vida nordestina (…) Tudo isso o Museu pode oferecer, tanto as coisas materiais quanto as lembranças, as memórias (…) O museu dá conta de tudo isso, pequeno como ele é, simples como ele é, humilde como ele é, mas de uma importância extraordinária para essa gente, e não só para essa gente, mas para todos nós que precisamos ter livros para ler a história dessa gente. E esse Museu da Maré é um livro, um livro aberto, aberto todos os dias à visitação de todo mundo”.

Assim Gilberto Gil, então Ministro da Cultura, descreveu o Museu da Maré em 2007, um ano após sua inauguração. Agora, o Museu de fato se torna um livro, um registro material portátil de parte de seu acervo. A obra “A Maré em 12 Tempos” foi oficialmente apresentada ao público, pelas mídias do Museu da Maré, em live no dia 30 de janeiro . O livro, que em breve estará disponível em formato virtual, atualmente tem quantidade limitada. A publicação, inspirada na exposição de longa duração do Museu, “Os Tempos da Maré, tem contribuições de moradores, convidados, amigas e amigos do Museu, tanto em texto quanto em fotografias.

A saga das fotos: pesquisa desde os tempos de mangue

A grande quantidade de fotografias, tanto históricas quanto contemporâneas, é um dos destaques do livro. Os textos que o compõem são resultado de depoimentos pessoais e, em grande parte, pesquisas feitas pelo Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (CEASM) desde os anos 80, e embora muitas das fotos sejam as que se encontram no Arquivo Dona Orosina Vieira, no Museu, também há algumas inéditas. Antônio Carlos Pinto Vieira, um dos organizadores e autor do capítulo “A Maré antes da Maré”, deu mais detalhes sobre as origens de algumas fotos. Muitas foram encontradas no acervo do Correio da Manhã, jornal extinto pela ditadura, cujos exemplares se encontram na Biblioteca Nacional. As fotos mais antigas estão no acervo da Casa de Oswaldo Cruz, grande parte de autoria do fotógrafo Joaquim Pinto da Silva. A observação importante é que eram registros da construção da Fiocruz, e até de outras obras importantes no entorno – como UFRJ e Avenida Brasil – nas quais a Maré aparece por acaso. Mas agora, em 2021, ela se torna protagonista dos mesmos registros. Outro caso está em foto de 1928 de Augusto Malta, onde um manguezal na entrada da Ilha do Governador é denominado apenas como Praia de Apicu. Foi a equipe do Museu da Maré que identificou esta como sendo uma foto de antes do aterramento para construção de várias das favelas, como Nova Holanda, Parque União e Rubens Vaz. Os mais familiarizados com a Maré podem reconhecer formas antigas de espaços conhecidos, como a antiga Ilha do Pinheiro, hoje a favela Vila do Pinheiro, já aterrada, e a Praia de Inhaúma, que se localizava onde hoje fica o Museu.

Praia do Apicu. Antigo litoral da Maré, com os manguezais e as ilha que formam a atual Cidade Universitária. Ao fundo, o Morro do Timbau e o arruamento de Bonsucesso. Augusto Malta. Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, 1928.

Uma obra dos “intelectuais orgânicos”

O evento não se constituiu apenas de uma apresentação formal do livro e sua origem, mas foi também um encontro de pessoas que participaram de sua elaboração e compartilham de um afeto que atravessa décadas. Algumas pessoas que contribuíram fizeram falas, como Renato Gama-Rosa, arquiteto, urbanista e pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz, que escreveu o prefácio; Regina Abreu, antropóloga e pesquisadora da Unirio; e a fotógrafa Rosângela Bento da Silva, autora de fotos históricas do cotidiano da Maré. Ivanir dos Santos, babalorixá e pedagogo, destacou o orgulho de ver o livro trazendo a “história dos que vêm de baixo pelos que vêm de baixo”. Autor do texto Tempo da Fé, ele ressaltou a importância de uma obra que resgata e renova a memória da luta comunitária, de “intelectuais orgânicos”, e destacou a Maré como uma fonte de inspiração. “O Museu da Maré é o verdadeiro museu do amanhã, que traz a memória e cria novos seres humanos”, afirmou.

Nesse sentido, Luiz Antonio de Oliveira, um dos organizadores e diretor do CEASM, falou sobre o longo processo de escrita do livro, por pessoas engajadas na sua concretização. “Nós não temos essa expertise de produzir livros e essa produção se confundiu muito com a nossa vivência. Foi um processo em que a gente, ao mesmo tempo em que queria lançar o livro, não conseguia contornar alguns empecilhos, mas, ao fim e ao cabo contornamos”. Ele ainda destacou a parceria fundamental com pessoas e instituições que ajudaram na transposição desses empecilhos e viabilizaram a concretude do livro, como o Museu da República e a Casa de Oswaldo Cruz. A autoria “orgânica” do livro também foi destacada por Mario Chagas, diretor do Museu da República e, como faz questão de se autodenominar, amigo do Museu da Maré. Em sua fala, ele relembrou a inauguração do Museu, com a presença de Gilberto Gil, e afirmou o protagonismo do espaço, tendo este sido a inspiração para o programa Pontos de Memória.

Outra participação de destaque foi de Tainara de Oliveira Amorim, filha de Seu Atanásio, grande liderança da Maré falecido em 2020. Ela lembrou a luta do pai pelo fornecimento de água e energia no conjunto de favelas e sua grande contribuição para o próprio Museu. Afirmou que a Maré era como uma filha para Seu Atanásio, e para ela é como uma irmã. Estudante de História, inspirada pela trajetória do pai, Tainara afirmou estar comprometida em fazer a história da favela chegar por todos os campos onde passar, porque esquecer a história é um risco para cometer os mesmos erros do passado.

 

Crianças nas palafitas. Anthony Leeds. Arquivo Dona Orosina Vieira, 1969.
Museu é lugar de histórias. Naldinho Lourenço. Arquivo Dona Orosina Vieira, 30 abr. 2009.

A memória preservada em tempos de luto

 

A coordenadora do Museu, Cláudia Rose, falou sobre todo o trabalho realizado na organização do atual acervo do Museu e das informações que entraram no livro. Envolveu explorar pastas e caixas dos moradores antigos e, principalmente, ouvi-los, valorizando a memória oral. Cláudia ainda destacou que, num momento em que a pandemia mata muitas pessoas idosas das classes mais pobres, o livro traz uma discussão de classe imprescindível. A memória e história de moradores de favela, que nunca foram valorizadas, agora estão sendo apagadas. Por isso, “A Maré em 12 Tempos” é um livro de posicionamento político, de que as memórias precisam ser registradas e contadas pelos seus protagonistas. Ao mesmo tempo, para Antônio Carlos Vieira, esse livro fala, acima de tudo, do futuro. Ele contribui para a valorização dessa construção contínua da história da Maré, e não à toa está presente no Museu a porta que ficava no gabinete da mareense Marielle Franco, a “semente” das mulheres periféricas na política. Por tudo isso, a obra é um registro inédito da história local, uma contribuição da Maré para enriquecer a história da cidade do Rio.

Marielle presente. Bandeira do Coletivo Flamengo da Gente. Paulo Barros. Arquivo Dona Orosina Vieira, 2019.

O livro “A Maré em 12 Tempos” é resultado de projeto aprovado no Edital II Programa de Fomento à Cultura Carioca – Modalidade: Museus, da Secretaria de Cultura da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, e também foi concretizado pela parceria com a Casa de Oswaldo Cruz – Fiocruz e com a instituição alemã Misereor. A obra tem como organizadores os diretores do CEASM Antônio Carlos Pinto Vieira, Cláudia Rose Ribeiro da Silva e Luiz Antonio de Oliveira.

O evento de lançamento do livro foi a primeira atividade do projeto Museu da Maré: Arte, Patrimônio e Diversidade, selecionado pelo edital Lei Aldir Blanc Cultura Viva RJ de apoio aos Pontos de Cultura do Rio de Janeiro. O 2º Encontro Memória e Patrimônio acontece em 24 de fevereiro, no Youtube do Museu, e será o lançamento do livreto “Um Mar de Histórias”, um material sobre o acervo do Museu, com a proposta pedagógica de ser trabalhado junto aos professores e estudantes das escolas da Maré.

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