Dez anos da Lei de Cotas e os desafios que permanecem para estudantes favelados

Educação, Notícias

Entrevistas: Ana Cristina da Silva e Carolina Vaz

Texto: Carolina Vaz

No dia 29 de agosto, completam-se 10 anos da chamada “Lei de Cotas”: a lei que determina a obrigatoriedade de haver cotas para o ingresso em instituições federais, como as universidades. Nesse tempo, mudou bastante o público das universidades públicas, não somente pela classe social, com entrada, obrigatória, de estudantes da rede pública de ensino, como também na cor. No Rio de Janeiro, as ações afirmativas permitiram que negras e negros moradores de favelas acessassem o direito ao ensino superior, em muitos casos sendo os primeiros da família em pleno século XXI. Porém, se o ingresso foi viabilizado – apesar de obstáculos anteriores, como a própria qualidade do ensino básico público – a permanência ainda é um desafio.

A Lei de Cotas

A referida lei que completa seus 10 anos no final deste mês se trata da Lei 12.711, sancionada em 29 de agosto de 2012, pela ex-presidente Dilma Roussef, e determina que universidades e institutos federais de educação, ciência e tecnologia reservem metade de suas vagas para estudantes oriundos de escolas públicas. Há parcelas, dentro dessa porcentagem, reservadas por critérios raciais. Aplica-se, portanto, a universidades como a Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). A parcela das cotas determinada por critérios raciais varia, pois deve ser proporcional às parcelas de pretos, pardos e indígenas das populações de cada estado.

Mas se nas instituições federais as cotas completam 10 anos, elas existem há 20 na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ): seu primeiro vestibular com cotas raciais e sociais foi em 2002. Hoje, a UERJ destina 45% de suas vagas para “estudantes carentes”, e dentro dessa categoria está a cota para negros, indígenas e quilombolas, somando para essas pessoas 20% do total de vagas de cada curso. Um estudo mostrou que a Maré é um dos bairros do Rio de Janeiro com mais estudantes cotistas na UERJ: são quase 0,6% de todos os cotistas. Entre os não-cotistas, é um dos bairros com menor representação: 0,02%.

Camila Felippe cursa o terceiro período de Odontologia na UERJ. Foto: arquivo pessoal.

As cotas foram um dos motivos da escolha da UERJ pela estudante Camila Felippe, de 25 anos, hoje aluna do terceiro período de Odontologia e moradora da Vila do João. Não somente as cotas, mas o método de entrada por um vestibular próprio e não pelo ENEM, e a existência das bolsas auxílio. A entrada na universidade considerada uma das mais populares do Rio de Janeiro não fez com que ela encontrasse ali um ambiente acolhedor: poucos são os alunos pretos que permanecem no curso; os materiais são caros; e os professores não se mostram preocupados em popularizar a execução da graduação. “No meu curso tem pretos. Você vê pretos até o terceiro, no máximo quarto período. Dali em diante, você não vê mais”.

“Nossos corres são outros”

O caso de Camila é emblemático: uma jovem preta, da Maré, trabalhadora, que entrou num curso que, apesar de gratuito para cursar, é um dos mais caros para se manter pela necessidade de comprar materiais e equipamentos: “No primeiro período foram 700 reais, no segundo eu não gastei nada e no terceiro agora foram 3 mil e pouquinho… agora, o próximo vai ser com base em 7 a 8 mil. E aí o quinto, sexto, vai continuando nessa média”. Além disso, a graduação é cursada em período integral; há dias em que ela entra 7h50 e sai 18h, o que inviabiliza ter um trabalho formal, restando como única renda fixa a bolsa de R$ 606. Morando com a companheira, ela precisa desse valor, basicamente, para viver, sem poder usar para comprar os materiais. São esses obstáculos que levam muitos pretos e pobres a desistirem ou prolongarem a faculdade.

Matheus Frazão (canto direito) reconhece a presença de outros estudantes pretos no curso, mas a graduação se torna mais longa. Foto: arquivo pessoal

Esse fenômeno é observado, também, por Matheus Frazão, de 26 anos, hoje estudante de licenciatura em Teatro na UNIRIO, e morador do Conjunto Esperança. “O que eu mais vejo é gente se formando em 10 anos, aí você vai se perguntar por que essa pessoa foi se formar em 10 anos… Primeiro, a faculdade em horário integral. A galera tem que trabalhar então tem que pegar pouquíssimas matérias, não dá para pegar tudo. Mora muito longe e nesse período de ida e volta não tem um bom rendimento na faculdade porque está muito cansado, está esgotado. Isso não é balela não, é papo real de pessoas que eu vejo”. A UNIRIO possui 16 modalidades de reservas de vagas, todas elas para pessoas que cursaram integralmente o ensino médio em escola pública. São separadas as vagas para pretos e pardos com menor renda; com qualquer renda; e com deficiência. Elas dependem da existência de uma quantidade mínima de vagas.

Mesmo assim, para Matheus, deveria haver uma “cota 2.0”, ou seja, uma maneira de permanecer na faculdade, com um salário para os estudantes que necessitam, mesmo que estivesse atrelado à realização de uma pesquisa ou projeto de extensão. Apesar de hoje ele estar num curso que exige menos investimento que o de Camila, sua primeira graduação foi em História da Arte, na UERJ, o que demandava a compra de materiais caros como lápis, pincel, papéis específicos, e isso só foi possível porque ele parcelou no cartão de crédito, pago pelo seu pai.

A linha de partida

Os 10 anos da Lei de Cotas levantaram uma desinformação sobre o tema: a lei prevê uma revisão exatamente dez anos depois. Isso fez com que muita gente pensasse que as ações afirmativas poderiam ser automaticamente canceladas este mês, o que não é possível. Mesmo sem revisão, a lei continua vigorando, mas o falso cancelamento foi material para debate no Congresso Nacional, dando audiência para quem defende o fim das cotas raciais. No entanto, os 10 anos só reforçam a necessidade das cotas, nítida também nas experiências pessoais. Matheus Frazão destaca a baixa qualidade do estudo nas escolas públicas de favelas e periferias, não apenas por serem sucateadas e faltarem professores, como também pelo cancelamento de aulas causado por operações policiais. No caso da Camila, que faz um curso de Biológicas, ela nunca teve a experiência, antes da faculdade, de estar num laboratório.

“A lei de cotas é uma política pública porque a gente tem um passado que é escravocrata, que não foi feito pro trabalhador, que não foi feito pra pessoa preta, que não foi feito para as mulheres. Então é necessário sim que essas cotas existam como um meio de reparação histórica e de entender que a educação básica não é para todos. Nem todo mundo acessa os mesmos moldes”.

Matheus Frazão, estudante de Teatro na Unirio
Matheus desenvolve performances que tratam de sua realidade morando na Maré, como em Cavalo Alado. Foto: José Bismarck.

Matheus foi o primeiro da família a entrar na universidade, e agora uma de suas irmãs tenta ingressar em Enfermagem. No caso de Camila, a primeira a ingressar foi a irmã Larissa, em Dança, na UFRJ, mas teve que abandonar quando entrou para a Lia Rodrigues Companhia de Danças, e passou a trabalhar viajando. Mas Camila se lembra que, tanto o ingresso da irmã quanto o dela, foram muito festejados. “A gente queria muito entrar no ensino superior porque a gente queria muito transformar a nossa vida. A gente queria dar um outro rumo, e também de certa forma retribuir à minha mãe”, conta.

Retorno para a favela

Apesar de todos os obstáculos, muitos estudantes que passaram no ENEM e no vestibular após cursar o ensino básico público e o pré-vestibular comunitário comungam da vontade de priorizar em seu trabalho o bem-estar da favela e abrir caminhos para as novas gerações. Para Matheus, é importante que essa graduação se reverta num retorno, assim como ele e Camila estudaram em pré-vestibulares comunitários. Hoje ele atua como arte-educador no Museu da Maré, dá oficinas na favela, e atua em peças e performances em diálogo com a comunidade. No caso de Camila, na área da saúde, ela reconhece que a maioria dos usuários do SUS são pessoas pobres e negras, mas encontra em seu curso todos os obstáculos para que o Sistema seja mais inclusivo e até mais representativo para seus usuários: “Existe a odontologia, vamos tornar ela diversa, mas como a gente vai traçar estratégias para que pessoas pretas possam acessar? Eu continuo vendo que é um curso branco, vai continuar sendo branco e para eles está tudo bem”. Com essa escassez de representatividade e obstáculos financeiros, a graduação demanda muita determinação para que ela não seja mais uma a desistir, mas seguir usufruindo do seu direito até o fim.

Camila enfrenta obstáculos a mais para se tornar uma dentista preta da favela. Foto: arquivo pessoal.

“Eu fico tentando não criar armadilhas para me sabotar, porque eu entendo que não é só porque eu não tenho dinheiro que eu não posso acessar aquele curso. Eu vou tentar arranjar outras estratégias. (…) O que estão me dando de fato de direito para acessar o curso? Além das cotas eu preciso de mais. É necessário mais para que eu esteja naquele espaço enquanto uma mulher preta, lésbica, de favela”.

Camila Felippe, estudante de Odontologia na UERJ

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