Fases da Lua: a história da mareense que se encontrou na arte

Cultura, Geral, Notícias

Por Ana Cristina da Silva

Lua Brainer tem um sonho, mas quem a vê tão confiante, dançando com maestria em cima de seus saltos, nem sequer imagina o quão cansativo foi percorrer os caminhos da vida. Afinal, ela é moradora do Pinheiro, uma das 16 favelas da Maré. Uma mulher trans, preta e artista. Os padrões impostos por uma sociedade preconceituosa apenas ressaltam sua coragem, porque não é fácil, nunca foi, mas Lua Brainer tem um sonho e, por isso, nunca desiste. Sua história começa no Museu da Maré, nas aulas de hip hop. Daí em diante passa pelo Teatro do Oprimido e se reformula com a descoberta da cultura ballroom. Sua dedicação traz prêmios e reconhecimento, reconhecimento esse que a leva para dançar nos palcos do Rock in Rio com apenas 25 anos de idade.

Lua dançou ao lado de Muse Maya no palco Supernova do Rock in Rio. Foto: Arquivo pessoal.

Uma vez, durante uma entrevista para o Jornal O Cidadão, o ator mareense, Wallace Lino, disse: “O sonho de ser artista, sendo favelado, é uma implicação política. Você se movimenta rasgando, rasgando as impossibilidades de existência dessa proposta, desse seu ato de sonhar”. No fundo, Lua sempre soube que precisava da arte em sua vida, mas não sabia como. Foi quando, em 2008, conheceu o Museu da Maré que lhe agregou de diferentes formas. Seu amor pela dança foi o primeiro a se aflorar no espaço, já que fazia aulas regulares de hip hop com o professor Cláudio Márcio. Em 2015 um dos tantos grupos do Teatro do Oprimido na Maré fez diferença em toda a sua trajetória: o grupo MaréMoTO, onde por 5 anos se viu atuando e estudando as técnicas de Augusto Boal. “Para mim foi muito gratificante a formação no MaréMoTO, tanto política quanto socialmente. Naquela época, em que eu era muito nova, ele chegou para agregar ainda mais a minha base curricular artística. Eu acho que o MaréMoTO me politizou para ir para o mundo e, a partir disso, eu fui procurar outras formas de cultura”.

CULTURA BALLROOM

Em 2018 Liniker apareceu cantando: “Se alguém por mim perguntar, diga que eu só vou voltar depois que me encontrar”, e tal como diz a letra da regravação da música de Cartola, em 2017 Lua deixou o Museu da Maré para se encontrar em novas linguagens culturais. Foi então que seu caminho se cruzou com o de Diego Cazul, uma das pessoas responsáveis por trazer a cultura ballroom para o Rio de Janeiro. Tendo surgido na Nova York da década de 60, graças à população LGBT latino-americana, a cultura ballroom representa um movimento político que envolve danças performáticas e muitas festas, mas que também celebra a diversidade de gênero ao trazer acolhimento e conscientização nos espaços que ocupa. “Eu conheci a cultura ballroom e aí eu me interessei, me identifiquei e reconheci família lá dentro também. Uma cultura em que todo final de semana tinha um baile, tinha festa (…), mas ballroom não é só movimento, ballroom também é essa troca de informação. Ela tem duas partes: ballroom enquanto baile e cultura enquanto apresentação, enquanto conversa, enquanto família”, explica Lua.

Lua participou do média-metragem “The Face of Ball”, que apresenta a cultura ballroom de forma performática. Foto: Arquivo pessoal.

Se chamar de mareense é uma forma de não apenas reconhecer sua origem, mas também de se orgulhar dela. Lua saiu da favela para descobrir mais sobre a cultura ballroom, mas toda vez que ia, carregava com carinho as palavras que ouviu da diretora do Museu da Maré: “A Cláudia Rose sempre falou ‘Você estando aqui é daqui pro mundo. Quando você chegar no mundo aí você tem que ter a cabeça de vir do mundo para a base’. Porque é um ciclo, tudo é um ciclo”. Assim sendo, Lua foi aos poucos trazendo o que ia aprendendo para dentro da Maré, primeiro por uma necessidade de treino, mas depois por um desejo de expandir aquele cenário dentro da favela. “Em muitos lugares aqui dentro da Maré a gente já mostrou a cultura, tipo no Espaço Pontilhão. Acho que a metade do pessoal da Maré já sabe que isso existe, que isso tá em alta. Às vezes me procuram para dar aula, mas I don’t have time, porém eu sempre estou passando informações de onde tem aula, onde tem treino e o dia em que eu posso parar pra gente dar uma conversada”.

PRÊMIOS E CONVITES

Durante a pandemia, para além de estar em processo de transição de gênero, ao qual descreveu como “um tempo de recomeço, tempo de morte e de renascimento”, Lua também se manteve focada em participar de inúmeras batalhas de dança, também chamadas de ball, que valiam prêmios em dinheiro. “Na pandemia foi bem bizarro, porque eu tive que me sustentar batalhando online. (…) às vezes tinha ball que valia mil reais, tinha ball que valia 700, porque sabiam que a gente estava passando por um processo de dificuldade e, assim, muitas balls salvaram muito meu aluguel. Acho que eu não estou na rua por causa deles”. Vencedora de vários Grand Prizes, Lua chegou até mesmo a competir e ganhar uma batalha contra dançarinas nova-iorquinas. Hoje, devido ao alto nível no qual se encontra, ela tem competido menos, mas tem sido chamada para ensinar o que sabe através de workshops e até mesmo atuando como jurada em competições. “Outros estados me têm como referência para travestis vendo meus vídeos antigos. (…) Eu já fui para o Rio Grande do Sul, já fui pra BH, já fui pra SP”.

Durante a pandemia Lua, também conhecida como Camylla na cena ballroom, batalhou com pessoas de diferentes países de forma online, onde conseguiu muitos prêmios. Foto: reprodução.

Tal como já foi convidada para participar de videoclipes dos artistas Izrra, DJ Zullu, Raquel e MC Dellacroix, Lua também foi convidada por artistas como Muse Maya e Azula para dançar nos palcos Supernova e Sunset do Rock in Rio. A moradora do Pinheiro, que se apresentou em três dias diferentes, disse que tudo aconteceu de forma muito rápida, em uma semana estava recebendo o convite da própria Muse Maya e logo depois já estava se preparando para apresentar. “Eu só tive reação depois, ‘caramba eu dancei no Rock in Rio’, porque eu estava em um momento de realmente curtir aquilo”, relembra Brainer. Porém, o último grande convite recebido por Lua foi o de participar do Baile de Halloween da Sephora, em São Paulo.

Lua foi convidada e marcou presença no baile de halloween da Sephora de 2022, na cidade de São Paulo. Foto: Arquivo Pessoal.

“Esteja no mundo da arte se qualificando

Pensando muito em seu próprio futuro, a dançarina do Pinheiro também é muito focada nos estudos. Prestes a terminar sua formação em francês, ela também se encontra no 7º período de Teoria da Dança na UFRJ e já pensa em uma pós-graduação de Produção Cultural e até mesmo mestrado. Afinal, apesar de amar a dança, suas vivências já a alertaram sobre as cobranças da vida: “Eu entendi que eu tinha que correr 10x mais, até enquanto corpo preto”. Para ela ainda é importante pensar em um futuro no qual sua idade avançada a impedirá de fazer o que faz atualmente, por isso ela agarra todas as oportunidades que pode, mas em casa nunca para. Quando não está treinando o corpo, está trabalhando a mente de frente para o computador, fazendo de tudo para que, independentemente do que aconteça, ela possa sempre bater o pé e se dizer artista, pois ela sabe da importância da arte em sua vida, ela conhece o poder de transformação que a arte oferece, e é isso o que ela quer: transformar o mundo através da arte.

Lua Brainer no videoclipe “Las Muchachas de Copacabana”, das cantoras Raquel e MC Dellacroix. Foto: Arquivo pessoal.

Em uma sociedade afundada no preconceito, na desigualdade e na intolerância, a vida de uma mulher trans, preta, favelada e artista não é fácil. Por trás do sorriso largo e da personalidade extrovertida, digna de uma sagitariana, Lua Brainer tem uma história sobre coragem e superação. Ela poderia ter desistido de toda essa busca por conhecimento cultural quando outras pessoas pediram para ela parar ou até mesmo quando se viu pouco representada no local onde mora e se sentiu um tanto sozinha em sua jornada. No entanto, ela continuou buscando e foi quando achou pontos de apoio, como o Museu da Maré, que mostraram para ela que era possível não só sonhar, mas realizar. “A minha experiência enquanto travesti também foi de rua, também foi de prostituição. Foram caminhos árduos e eu saí porque eu tive o conhecimento, eu tive o acesso. Acesso e privilégios são diferentes. Eu, enquanto travesti preta, não tenho privilégios, tenho acessos e acessos que eu mesma procurei, como a UFRJ. Me formei no CEASM, fui pro Fundão e tive os acessos da cultura ballroom”.

Lua Brainer tem um sonho, um sonho de viver da arte em sua plenitude. Um sonho de fazer com que, assim como ela, o público LGBTQIA+ do Conjunto de Favelas da Maré se encontre, que não deixem que o medo e a opressão os vençam. Um sonho de trazer cada vez mais a cena ballroom para dentro da favela e de empurrar cada vez mais a favela para o mundo. “Eu tenho essa linguagem artística para projetar que ainda não está projetada 100%. Ela só vai estar quando eu ver um grupo ou espaço programando essa linguagem artística que eu trago. Tipo ‘Nossa, fulano está dando aula disso e disso aqui na favela’. (…) Eu ainda acho que eu estou nesse ciclo de avançar mais e mais pro mundo e que daqui a 3 ou 4 anos, quando eu estiver indo pro mundo, sempre que me perguntarem ‘de onde você veio?’, eu vou falar: “minha árvore foi o Museu da Maré, onde eu comecei a treinar sozinha’, é isso”. Para o futuro, Lua Brainer ainda pensa na possibilidade de dar aulas no Museu que vão além da dança, pois deseja trazer uma formação social e política que também se encontra na cena ballroom. 

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