Manifesto-Ancestral, um espetáculo da favela da Maré
Por Matheus Frazão
O projeto Entre Lugares Maré está na sua sétima edição. O grupo de teatro fala sobre a memória local, criando as suas próprias narrativas, tendo participação ativa dos alunos em todo o processo criativo para a montagem dos espetáculos montados, e atualmente se localiza no Museu da Maré e conta com 30 alunos no elenco. O mais recente trabalho do grupo é a peça “Ela não se lembra mais: 33 planos contra o esquecimento”, estreada no dia 23 de março, dirigida por Renata Tavares e Tiago Ribeiro, com Pedro Emanuel assinando como dramaturgo, e na coordenação do projeto estão Flavio Vidaurre e Vanessa Greff.
O espetáculo se configura também como um manifesto, um grupo necessário na cena teatral contemporânea, um coletivo que resgata e reconta a sua história com propriedade e garra. O processo se iniciou em Julho de 2018, onde os alunos do Projeto Entre Lugares Maré foram a uma pesquisa de campo na Pequena África, localizada na região portuária do Rio de Janeiro, e a pesquisa se estende às histórias compartilhadas pelos alunos ao longo do processo. Esse montante resulta no último trabalho produzido por essa potência de artistas mareenses.
Na cena do espetáculo surge Alice, mulher, negra, empregada doméstica e mãe de três filhos. Na peça são abordadas muitas questões pertinentes à favela, como o racismo, a violência, a religiosidade e a retomada da escravidão em tempos sombrios. Leona Kalí, que protagonizou Alice, conta a experiência de vivenciar a personagem : “Quando recebi Alice, sabia que seria um grande desafio, foi um processo muito interno, tenho várias mulheres como inspiração, que são as Alices da vida real, em especial a minha mãe que leva uma vida guerreira. Penso que essa história é essencial para um despertar sobre os corpos, vidas e saúde mental do negro no Brasil”.
Em conversa com a atriz Camila Moura, ela relata a sua visão sobre o trabalho estreado em 2019: “Tentam sempre esconder nossa real historia e quando vamos estudar podemos nos deparar com questões muito delicadas, foi um choque estudar sobre ancestralidade, doloroso, mas, necessário”
No processo de montagem o elenco toma outras perspectivas e se percebe de outra forma, tendo o poder de construir e reconstruir sua história, não deixando se apagarem pautas tão necessárias para o atual momento político e social, que se perpetua desde séculos passados, uma sociedade construída à base da desigualdade e da violência. É um ato revolucionário recontar essas histórias que falam sobre ancestralidade, instigando nos alunos a leitura da favela de uma forma mais crítica, é um diferencial que não costumamos ver nos teatros do restante da cidade, com favelados protagonizando as suas próprias histórias.
O dramaturgo Pedro Emanuel, que fecundou e acompanhou o processo, fala como foi pra ele escrever e participar da montagem: “Foi um processo muito rico e intenso, onde penso o teatro como uma ferramenta social, como um modo de refletir os nossos conflitos, as nossas circunstâncias, como certos esquemas estão montados sobre os nossos corpos, sobre as nossas relações. Levantar perguntas de como isso pode ser mudado foi importante, transformador, no sentido de sair de uma certa modalidade teatral e pensar esse teatro que se engaja numa alteração de um quadro social, muitas vezes injusto, é um processo que não termina”.
Para quem ainda não viu a grandiosidade do espetáculo “Ela não se lembra mais: 33 planos contra o esquecimento”, ainda dá tempo, a peça continua em cartaz nos dias 13 e 14 de abril, às 19 h, mas importante chegar uma hora antes para a retirada da senha. A apresentação acontece no Museu da Maré: Avenida Guilherme Maxell, 26 – Maré.