Marielle Franco: três anos de saudade na Maré

Geral, Memória

Por Carolina Vaz, com contribuições de Beatriz Souza, Cláudia Rose, Maria Gabriela Duarte e Raysa Castro

Comunicadoras do CEASM

Com informações do Wikifavelas 

Esta é a primeira parte da homenagem a Marielle Franco pelo Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (CEASM). Leia até o final para acessar a segunda parte.

Hoje, 14 de março de 2021, completamos três anos do assassinato de Marielle Franco. Esse texto é uma homenagem dos projetos do CEASM a essa mareense que conhecemos há mais de 20 anos, que nos atravessou de diversas maneiras e deixou um legado material e imaterial em nossa história.

Marielle Franco, nascida em 27 julho de 1979, foi a primeira filha de Marinete da Silva e Antonio Francisco, descendentes de nordestinos. Seu avô paterno, Seu Francisco, foi um dos primeiros moradores da Maré, ainda na época em que a maioria das casas eram de palafita. Até hoje há no Tempo do Cotidiano, espaço interno à exposição de longa duração do Museu da Maré, uma reprodução da vendinha do Seu Francisco, com objetos doados pela família. Na Maré, ela morou no Conjunto Esperança, Timbau, Baixa do Sapateiro e Conjunto Manoel Nóbrega. Foi catequista da Igreja Nossa Senhora dos Navegantes, primeira paróquia na Maré. Mas Marielle também era fã do lazer, da dança: fugia de casa para ir aos bailes e foi dançarina da Furacão 2000. Aos 19 anos, nasceu sua filha Luyara e ela passou a enfrentar os desafios da maternidade solo.

Marielle no Tempo do Cotidiano, que reproduz uma vendinha de seu avô. Foto: Museu da Maré.

Marielle fez parte da primeira turma do CPV-CEASM, em 1998, mas abandonou devido à gravidez. Ela voltou em 2000, e estudou por dois anos, até passar em Ciências Sociais na PUC-Rio. Ela permaneceu no CEASM, trabalhando na secretaria e como membra do Conselho Gestor, mantendo a tripla jornada de mãe, trabalhadora e estudante, após ter conquistado uma bolsa na PUC pela parceria do CEASM com a vice-reitoria comunitária. Em 2014, iria se tornar mestre em Administração Pública, com a dissertação “UPP – A redução da favela a três letras: uma análise da política de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro”.

Quem se lembra dessa época é León Diniz, amigo e ex-professor de Marielle no CEASM. Segundo ele, ela era uma das que se organizavam para fazer os históricos “aulões” do CEASM. “Juntava um monte de alunos e alunas e iam lá pra casa, porque eu tinha um computador e a gente tinha que montar um vídeo e eu fazia um pouco isso… aulão de América Latina, de Ditadura, de mulheres, a Marielle participava bastante”. Depois, viraram praticamente colegas trabalhando no CEASM. Em 2006, havia na instituição um grupo que se dedicava a debates, e com o lançamento da candidatura de Marcelo Freixo alguns se engajaram na campanha. Após a vitória, foi decidido que Marielle iria compor o mandato como representante do grupo.

Marielle e a filha Luyara. Foto: Instituto Marielle Franco.

Outra pessoa desse grupo, na época, era Lourenço Cezar, hoje um dos diretores do CEASM. Segundo ele, a memória que tem de Marielle, de 20 anos atrás, é de “uma Marielle muito jovem, mãe, tentando manter os estudos e relacionamentos… uma pessoa que apresenta uma certa insegurança, mas que nunca teve dúvidas do seu papel como mãe. A prioridade sempre foi o sustento da filha”. Assim, Luyara, nos seus primeiros anos de vida, passou muito tempo dentro do CEASM, “era uma quase uma filha da galera”, segundo Lourenço. Esse início dos anos 2000 foi marcado para eles pela militância de favela, e quando começaram a abraçar a causa dos Direitos Humanos foi motivado pela morte de crianças. A cada assassinato, alguém estava ligado àquela criança. “A nossa vida está sempre impactada pela violência. Cada pessoa próxima que morria nos atingia diretamente”.

O trabalho como assessora parlamentar de Freixo foi o início da sua atuação pelos Direitos Humanos na vida pública, principalmente pelos direitos das mulheres e da população negra e de favela. Nessa época, coordenou a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (CDDHC/Alerj).

Marielle vereadora

“Um dia, em 2016, Marielle me chamou para conversar e falou: acho que vou ser candidata. Eu nunca tinha pensado de a Marielle ser candidata, e eu falei: vamos conversar. Fiquei ‘amarradaço’. Eu estava na campanha do Freixo e acompanhava a Marielle muito de perto”, é como conta León Diniz. O que ela queria com o mandato sempre foi muito nítido: “Era fundamental discutir as questões de feminismo, do racismo, do machismo, de sociedade que a gente quer. E a Marielle é fruto disso: do que ela escolheu na vida e do pré-vestibular também”.

A campanha de Marielle teve o slogan #MulheRaça, evidenciando que travaria as lutas de classe e gênero. A Maré se tornou cenário de sua campanha, veiculada em numerosas mídias, sempre evidenciando sua origem mareense, sua identidade de cria. Seu lema era “Eu sou porque nós somos”.

Marielle exerceu sua “mandata”, como chamava, por um ano e três meses. Nesse tempo breve, interrompido pela violência, ela mexeu com as estruturas do palácio que é a Câmara Municipal. Nesse espaço de homens brancos, além de sua presença e das membras de sua equipe – mulheres negras, periféricas, trans – ela organizou eventos, projetos e diversas outras formas de articulação em prol dos direitos das mulheres, das faveladas e favelados, da população negra, da população LGBT. Apresentou 16 projetos de lei e presidiu a Comissão da Mulher, que realizou dezenas de atendimentos a mulheres em situações de agressão de diversas formas. Por causa de Marielle, jovens negras entraram naquele palácio pela primeira vez como convidadas, povos de religiões de matriz africana ocuparam o plenário para assistir o debate público “Awre aos nossos ancestrais – Reexistir na Fé!”; mulheres negras constituíram integralmente a mesa da entrega da Medalha Pedro Ernesto a Conceição Evaristo. No primeiro ano de seu mandato, aprovou o projeto de lei que previa a criação de Casas de Parto no município. Em 2017, a mandata da Marielle organizou, juntamente com representantes de diversas favelas, o Seminário Direito à Favela, no Museu da Maré, que foi também um viradão cultural, debatendo temas como saneamento e violência policial, e constituído ainda de oficinas culturais.

Para Lourenço Cezar, a história de Marielle foi o marcador para sua atuação como vereadora: “A Marielle tinha muito essa habilidade de perceber que a nossa luta tem uma superestrutura forte de combate mas ela se dá no cotidiano, nas necessidades primárias. Ela olhava para si e pensava o que tinha faltado para ela enquanto mãe solteira, e tão jovem, e até os últimos dias ela tinha essa preocupação e essa capacidade de sistematizar as demandas como um projeto de lei”.

Para Leon, ela tinha o diferencial de não separar as pessoas na luta: “Nessa briga grande da esquerda hoje, de identitarismo versus revolucionários, a Marielle tinha uma prática em que ela resolvia isso no ‘pescoção’ que ela dava, que era: é fundamental discutir racismo mas os brancos que estão pra mudar o mundo vão junto comigo, não separados, e para discutir sexualidade os heteros vão estar comigo”.

Marielle na cerimônia de entrega da Medalha Tiradentes da ALERJ à Mãe Beata de Iemanjá. Foto: Instituto Marielle Franco.

 

Seminário Direito à Favela, em 2017. Foto: Museu da Maré.

No dia 14 de março de 2018, Marielle participava de um desses eventos de seu mandato, a roda de conversa “Jovens negras movendo as estruturas”, na Casa das Pretas, espaço coletivo de mulheres negras na Lapa. Na volta para casa, com seu motorista Anderson Gomes e sua assessora Fernanda Chaves, foi vítima de um atentado contra o carro em que estavam. Ela e Anderson foram brutalmente assassinados. Até hoje nos lembramos desse dia, de todas as mensagens e ligações para saber se era verdade. E era verdade: perdemos Marielle. O luto se juntou à luta e já no dia seguinte, pela manhã, enquanto o velório acontecia na Câmara Municipal milhares de pessoas a homenageavam na praça em frente, a Cinelândia. À tarde, as pessoas (e muitas outras que se juntaram) percorreram o centro da cidade em ato, como homenagem a Marielle e indignação pelo crime. Três dias depois, outro ato foi realizado na Maré, partindo das proximidades da Clínica da Família na Vila do Pinheiro, passando pela Linha Amarela, Linha Vermelha e Avenida Brasil, até o Parque União. Lá, na Igreja Nossa Senhora da paz, os padres Damasceno, Luiz Antonio e Niraldo conduziram uma belíssima missa em homenagem à mareense que marcou nossa história. Nesse dia, cerca de 5 mil pessoas fizeram a caminhada pela Maré.

Ato na Cinelândia em 15 de março de 2018. Foto: Carolina Vaz

 

Missa em homenagem a Marielle em 18 de março, no Parque União. Foto: Carolina Vaz.

 

Para ler a segunda parte, O Legado de Marielle na Maré, clique aqui.

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