Mudança climática vira tema de debate entre moradores

Educação, Memória, Notícias

Por Ana Cristina da Silva e Carolina Vaz.

Foto de capa: José Bismarck.

No dia 28 de janeiro, o Museu da Maré recebeu dezenas de pessoas para o encontro Memória Climática, com o objetivo de trocar experiências e traçar estratégias para combater os impactos das mudanças climáticas. O evento começou por volta das 9h com um café da manhã coletivo. Logo em seguida, os mareenses que estavam presentes compartilharam itens e fotografias que, de alguma forma, se relacionavam com o tema escolhido naquele sábado. Com objetos como redes e agulhas de pescas e fotografias que mostravam uma Maré diferente da atual, todos se prepararam para quatro rodas de conversa que, ao longo do dia, trariam à tona questões como poluição das ruas, falta de arborização, racismo ambiental e as consequências trazidas pela presença e também ausência do poder público em diferentes momentos da história do conjunto de favelas da Maré. 

O evento foi o primeiro de uma série de encontros que serão realizados pela Rede Favela Sustentável, dentro de seu GT de Pesquisa de Memória Climática, e teve realização do Museu da Maré em parceria com o coletivo Raízes da Mata.

Parte das fotografias e objetos levados pelos moradores. Foto: José Bismarck.

Por volta das 11h, todos os presentes, moradores e ex-moradores do Conjunto de Favelas da Maré, reuniram-se no galpão para a primeira roda de conversa, chamada de “O que são as mudanças climáticas?”. Ali, muito se falou sobre os impactos causados pela poluição não só dentro, como também no entorno do território. No entanto, o que veio a desencadear uma série de falas e depoimentos foi a reflexão de Antônio Carlos Pinto Vieira, um dos fundadores do CEASM. Sua observação é de que por mais que a televisão esteja constantemente falando sobre as mudanças climáticas, dificilmente se vê uma preocupação com as populações mais pobres que também sofrem com o aumento de dias quentes e chuvas catastróficas. “Quando a gente era criança, a gente mal tinha um ventilador em casa. Hoje em dia quem consegue dormir sem um ar condicionado? Esses são elementos que a gente tá vendo que já estão impactando a nossa vida e a gente precisa estar muito atento”.

“A mudança climática é um retrato da desigualdade”.

Na sequência, o que aconteceu foi uma costura de relatos entre as pessoas que conhecem bem a Maré. Pensando no que vinha causando as drásticas mudanças climáticas, muitos falaram sobre o acúmulo de lixo em determinadas localidades, tal como fez Edilene Nascimento de Oliveira, da Associação de Pescadores da Vila do Pinheiro (APEMAR). Ao falar do descaso com o manguezal do Canal do Cunha, ela relatou que o excesso de lixo dificulta não só a travessia pelo Canal de pescadores, que chegam a levar até duas horas para chegar à associação, como também prejudica os animais da região. “Não vem ajuda do poder público, ninguém quer entrar lá pra poder fazer esse trabalho de limpeza, eles alegam que é área de risco”. Tudo isso também gerou um debate sobre a desigualdade e o racismo ambiental, onde os moradores pontuaram que enquanto os espaços da Zona Sul são bem cuidados e preservados, regiões como as periféricas são menosprezadas e esquecidas. “Se você é pobre você tem que morar perto de lixão, se você é pobre você tem que morar perto da poluição, então essa é uma discussão hoje. Por que o lixo tá sempre perto de pessoas pobres?”, questionou o morador Luiz Carlos Santiago.

Edilene Nascimento falou um pouco sobre o descaso sofrido no manguezal do Canal do Cunha. Foto: José Bismarck.

“A gente já sofre um impacto imenso aqui na questão da mudança climática, até pela própria construção da favela, né. Nós moramos, literalmente, cercados pelas 3 maiores vias expressas do Rio de Janeiro (Avenida Brasil, Linha Vermelha e Linha Amarela), jogando monóxido de carbono e tudo que é gás aqui dentro. Tem parte da favela que as casas já estão com 6,7 andares, ou seja, verticalização, o ar não circula. Fica vários, vários dias sem chover e esse ar aqui todo poluído”.

— Jefferson de Paulo, biólogo.

Não há dúvidas que a falta de arborização compromete a qualidade de vida das pessoas. Essa foi uma outra preocupação discutida na roda. Rozinete Siqueira, mais conhecida pelo apelido de Netinha, mostrou descontentamento com a situação da comunidade que continua a crescer e, no processo, segue derrubando árvores para a construção de novas lojas e casas. “Deixa um espaço, um pedacinho para você plantar uma roseira, plantar uma couve, plantar um pé de aipim. Isso não tem, é tudo concreto. Um calor descomunal…”, diz Netinha. Por sua vez, Valdirene Militão lembra da linda flamboyant da Avenida Brasil que, por mais que fizesse sombra e protegesse os moradores que esperavam pela famosa kombi da estrelinha, também foi derrubada.

“A Rocinha cresceu assim (horizontal), o Alemão cresceu assim (horizontal), e a Maré cresceu assim (verticalmente), com casa de 3, 4 andares em toda a Maré. O que acontece aqui? Ela tem que ser tratada como uma verdadeira cidade. Volta Redonda não tem o quantitativo de pessoas que tem aqui, Maricá não tem o quantitativo de pessoas que tem aqui. A Maré é tratada como se fosse uma mera favela, e ela é uma cidade. Aqui tem UPA, aqui tem postos de saúde, aqui tem ONGs, aqui tem cooperativas, tem associação de moradores, tem museu, tem pessoas formadoras de opinião”.

Vagner França

Vagner também levou uma rede de pesca e refletiu sobre a fala de Rozinete quanto ao manguezal e os animais que ali sobrevivem. Foto: José Bismarck.

Com o tema “Como se deu a ocupação da Maré e qual é a relação com o clima?”, a segunda roda de conversa foi preenchida pelas memórias da comunidade e de como se deu sua ocupação e transformação nos últimos anos.  Em determinado momento, Cláudia Rose, diretora do Museu da Maré, utilizou das fotografias que estavam sendo passadas de mão em mão pela roda para falar sobre o processo de aterramento das ilhas na região da Maré, como a Ilha do Pinheiro, também chamada de Ilha dos Macacos, que hoje é conhecida como Mata. A partir dali muito se fala sobre os impactos negativos trazidos pelo poder público na região da Maré que hoje, distante das memórias de muitos moradores, não conta mais com praias ou ilhas, mas sim grandes áreas que foram aterradas e submetidas a grandes níveis de poluição. “Todas as praias aqui do Fundão eram próprias para tomar banho, e aí começa o quê? A poluição dessas praias. Ancoravam o navio lá no meio e de lá começavam a jogar óleo, acabando com aquilo ali e finalmente conseguindo o que eles queriam: acabar com a praia de Ramos, que era uma praia bem frequentada, toda a Zona Norte ia para a praia de Ramos”, diz Luiz Carlos Santiago.

 Imagens compartilhadas na roda mostraram a Maré antes e depois do processo de aterro. Foto: José Bismarck.

Racismo ambiental e direito à moradia

Na terceira roda de conversa, com o tema “Como questões climáticas e ambientais dialogam com o direito e acesso à moradia?”, um assunto que foi muito debatido é o direito ao meio ambiente da população favelada, quando esse é atravessado por outras violações de direito como a moradia e o saneamento. Estava presente uma das maiores referências atuais de luta pela moradia, Dona Penha da Vila Autódromo, que criticou a política de moradia ofertada pelo Estado. Assim como muitas políticas públicas, esta chega “de cima pra baixo” e ofertando o mínimo, como é o exemplo das casas de 40m² do Minha Casa Minha Vida. Ela defendeu que a moradia vinda de uma política pública tem que ser digna e comportar a família em sua totalidade, mas o que acontece na verdade é privilegiar o uso da terra para a especulação imobiliária, para construção de grandes edifícios ou condomínios para quem tem maior poder aquisitivo. É o caso da própria Vila Autódromo, de onde a prefeitura do Rio tentou remover Dona Penha, num primeiro momento para as obras das Olimpíadas, mas depois seriam construídos prédios para pessoas mais abastadas. Outro ponto que ela colocou foi exatamente da remoção de favelas que passaram pela autoconstrução.

Dona Penha, referência em luta por moradia: “Queriam me tirar da minha casa para construir outros prédios depois das Olimpíadas”. Foto: José Bismarck.

“Vocês aqui construíram a comunidade da Maré. Não foi o governo, foram vocês. E quando está uma terra boa de morar, o que eles fazem? Eles vêm dizer que vai remover, porque a terra já está boa para eles habitarem, para nós não”.

— Dona Penha, militante da luta por moradia.

Quem também deu um testemunho desse tipo de tratamento pelo Estado foi Emília de Souza, moradora da Comunidade do Horto, que resiste contra as tentativas de remoção há mais de 40 anos. Segundo ela, a comunidade é constantemente ameaçada de remoção com justificativa de preservação ambiental das áreas naturais próximas, como o Parque Nacional da Tijuca. No entanto, outro terreno próximo que pertence ao Instituto de Matemática Pura e Aplicada (IMPA) retirou 900 árvores para construir um alojamento para pesquisadores, enquanto a comunidade é impedida de fazer uma ação de replantio de mudas. “A questão é: o racismo ambiental está presente na remoção da comunidade do Horto, o racismo ambiental está presente em todas as remoções que aconteceram na zona sul, no crescimento da Maré também”.

Consciência ambiental nas atitudes e projetos locais

O evento finalizou com a quarta roda de conversa: “Qual sabedoria popular e soluções a comunidade gerou para estes desafios?”. Neste momento, um dos pontos importantes que foram colocados é que a consciência ambiental existe na favela e é exercida desde as iniciativas individuais até os projetos maiores. Brenda Vitória Pinto, representante do Raízes da Mata, lembrou dos inúmeros canteiros de planta feitos em pneus, espalhados pela favela, que são uma forma de reciclagem. Existem ainda hortas em casas, escolas  e até uma horta comunitária como a Horta-escola comunitária Maria Angu. Valdirene Militão, educadora ambiental e artesã, comentou ainda do Bhega, morador do Piscinão que recolhe com os moradores o óleo de cozinha usado para depois ser transformado em sabão. Lorena Fróz, idealizadora do Faveleira, projeto de educação ambiental e comunicação, citou uma série de projetos que existem hoje na Maré, como o Raízes da Mata que atua no Parque Ecológico do Pinheiro; o Cocôzap, que faz a pesquisa e produção de dados sobre saneamento no bairro; o Muda Maré, que já foi um projeto de origem universitária, mas hoje faz educação ambiental pelos próprios moradores; e a Escola Municipal Professor Josué de Castro, que faz ações de educação ambiental com reciclagem e utilização de composteiras para os resíduos orgânicos.

Valdirene Militão, moradora da Roquette Pinto, compartilhou suas memórias e mediou a última roda de conversa. Foto: José Bismarck.

Para Brenda Vitória, embora haja vários projetos em várias partes da Maré, eles ainda não dialogam e isso acontece, em parte, em virtude das barreiras invisíveis que separam as favelas do bairro. Para ela, isso poderia ser resolvido através do próprio Parque Ecológico presente na Vila dos Pinheiros: “O Parque Ecológico é um dos espaços mais verdes do Complexo da Maré e a gente está perdendo esse espaço. Então como a gente usa o Parque Ecológico pra criar a aproximação dos coletivos, projetos e instituições dentro da Maré? E também o próprio morador (poder) trabalhar a educação ambiental a partir do pertencimento com o local. A Mata fez parte da história de muitos moradores aqui da Maré”. Projetos que agora não estão ativos também foram tema da roda, como é o caso do EcoRede, executado a partir do CEASM, que levava Educação Socioambiental para escolas e ainda tinha um braço de Geração de Trabalho e Renda, mantendo uma rede com os catadores, que recebiam carrinho e pontos exatos de coleta de material. 

O evento foi finalizado com cada pessoa presente expressando em uma palavra o sentimento sobre o dia, passando por Memória, Orgulho, Empatia e outras. Os demais encontros da Pesquisa de Memória Climática da Rede Favela Sustentável foram marcados para hoje (04) na Rocinha, dia 11/02 em Antares (Santa Cruz) e dia 12/02 no Museu do Horto.

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