Ele não viu que eu estava com a roupa da escola, mãe?”

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Por Carlos Gonçalves

Um dia desses, como outro qualquer, me peguei lembrando as tantas e tantas situações que já passei na Maré. Tenho que reconhecer que passei um pouco de tudo, dos momentos mais acalorados, como os famosos “polícia e ladrão” que nunca abandonaram a minha infância, principalmente quando faltava luz na favela, aos momentos de muita tristeza que, na maioria das vezes, estavam associados às formas de violência que já vivi.

Falar dessas violências, passadas ou atuais, me traz uma enorme aflição. Quando escrevo algum texto sobre o tema fico sempre na dualidade entre cometer, sem querer, o equívoco de fortalecer uma imagem de uma favela “violenta e perigosa”, já muito trabalhada ao longo de décadas pela mídia, ou então conseguir de fato transmitir a denúncia de uma violação, sob um olhar que certamente os “tradicionais meios de comunicação” não falariam. Dessa maneira, tentarei começar o meu texto falando sobre uma dor, a dor de saber a profundidade que é ser a parte matável dessa cidade. Assim, quem sabe, mostrar que aqueles que merecem o estigma de violento não são os que sofrem com essa dor, mas sim aqueles que a provocam, ou seja, o Estado.

Isso é algo realmente difícil – reconheço – até porque estamos falando aqui da construção de outra narrativa sobre fatos muito conhecidos, uma narrativa feita por aqueles que historicamente não tiveram entre os seus iguais muitas pessoas que pudessem fazê-la. Pois bem, vou começar propriamente o texto pela maneira que eu sempre acreditei que algo dessa gravidade deveria ser escrito e pensado: colocando-me sob o olhar de quem sentiu essa dor. Dito isso, eu me imagino voltando à infância, e revivendo meus 13, 14 anos. Eu sou um adolescente negro de origem popular, não muito preocupado com o futuro, mas bastante preocupado com os laços que construía. Na manhã de uma segunda, saio de casa com a minha mãe em uma das milhares de vezes que ela me acompanhava até a escola. Confesso que a minha mãe tem algumas manias, dentre as quais destaco a de sempre falar que eu era o Príncipe da vida dela, tanto eu quanto a minha irmã. Vou me apegar a este momento, no momento que ela pronuncia, pela milésima vez, essa mesma frase. Imagine que, no término dessa frase, segui sozinho até a escola e, de repente, senti um tremor vindo do céu, os telhados balançando como se tudo fosse desabar. Uma sensação de medo e angústia toma conta do ar, quando surge no céu o símbolo, o símbolo daquilo que para os favelados, representa “a máquina de buscar almas”: o caveirão aéreo, um helicóptero blindado da polícia capaz de efetuar inúmeros disparos por minuto. Por precaução, resolvo voltar para casa. No caminho percebo que a “operação” estava a todo vapor. A favela estava tomada pelo ódio dos que operam a máquina Estado. No meio da confusão, percebo outro caveirão, o original, o carro blindado que ajuda a derrubar corpos no chão. Por um “azar do destino” sinto esvaziar a minha vida. Uma ardência muito forte toma o meu peito e, quando dou por mim, meu uniforme escolar está ensanguentado. Ao chegar desesperada, minha mãe sente junto comigo uma mistura de medo e adrenalina: “ele não viu que eu estava com roupa de escola, mãe?”, indago-a racionalmente. Essas foram algumas das últimas palavras de Marcus Vinicius para sua mãe logo após ser alvejado pelo veículo blindado da Polícia Civil na favela da Maré. Nada mais te surpreende? Você sabe o que disse a juíza que recebeu a ação da defensoria pública contra essas operações com elevado grau de violência? “Não cabe ao Poder Judiciário indicar uma determinada política de segurança pública a ser adotada pelo Poder Executivo ou impedir que a Secretaria de Segurança Pública realize a política por ela desenvolvida ou sua atividade de policiamento”. O judiciário pode tudo, mas isso não.

Para quem nunca acordou sob o som de uma rajada “não há demonstração de que a utilização de aeronaves em operações policiais aumente os riscos e os danos para o enfrentamento das violações de direitos humanos”. Quando li isso tive a reiterada certeza de que a nossa vida, de fato, não vale nada para esse Estado. No fim, para essa juíza, de nome Ana Cecilia Argueso Gomes de Almeida, da 6ª Vara de Fazenda Pública do Rio, um helicóptero atirar do alto em uma área altamente povoada é uma ação “padrão”. Não fez sentido a ela indagar se, em uma situação que de fato é inevitável uma operação policial (não era esse o caso), é assim tão difícil tomar precauções que preservem a vida de inocentes? Não fez sentido, a meu ver, porque a parte da cidade onde ela mora é a parte “não matável” do Rio de Janeiro. Coube a ela também questionar o motivo de não haver câmeras internas nos caveirões, terrestres ou aéreos, tal como nas viaturas. A solidariedade à mãe do menino, Bruna Silva, e aos demais familiares, é algo que cabe a toda a sociedade civil.

A perda de uma vida humana, principalmente de uma criança que simbolicamente estava utilizando o uniforme escolar no momento em que sofreu tamanha violência, é um atentado contra todos nós. Devemos urgentemente nos organizar para fortalecer campanhas como “caveirão não!” e pelo fim desse tipo de operação. É caso de sobrevivência, e nada mais.

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