Dayana Gusmão: pesquisa de mestrado defende a primeira moradora da Maré como exu

Educação, Notícias

Por Carolina Vaz

Foto de capa: Raysa Castro

O dia 27 de julho de 2023 foi o dia em que Marielle Franco completaria 44 anos, mas especificamente neste dia outro evento, marcante para a história da Maré, aconteceu. Foi o dia em que, no Museu da Maré, compôs-se uma banca de mestrado com dois professores e uma professora acadêmica, uma contadora de histórias, uma auxiliar de serviços gerais e uma mãe de santo. Foi com esta banca, no dia 27/07/2023, que a assistente social Dayana Gusmão, cria da Divisa, obteve seu título de mestre em Memória Social pela UNIRIO. A pesquisa que foi capaz de, pela primeira vez em quase 30 anos, tirar o Programa de Pós-graduação em Memória Social de seu campus na Urca, leva o título “Exu e Orosina Vieira: caminhos de memória e resistências nos muros da Maré”.

Apresentação da pesquisa no Arquivo Dona Orosina Vieira. Foto: arquivo pessoal.
Falar da gente

A história desta pesquisa perpassa toda a história da Dayana, hoje com 39 anos, e a história da própria Maré e de suas instituições. Não estava nos planos de seus pais ela se tornar uma pesquisadora da favela: “Meus pais me criaram para que eu galgasse o mundo e saísse da favela”, conta. Mas sua avó Almerinda sempre insistiu que ela não saísse da Maré, e até a vida adulta educou Dayana sobre os lados positivos do bairro. Ela cresceu ouvindo sobre o trabalho de homens e mulheres na construção de suas casas, todo o processo de aterramento, e sendo levada a refletir como foi que o que antes era água se tornou o chão onde hoje ela pisa.

Quando o Museu é inaugurado, em 2006, e começa a mostrar mais da história da Maré, ela começa a conviver com outras mulheres muito fortes e determinadas a manter essa memória viva. Mas algo na exposição “Os 12 Tempos da Maré” incomodava: onde estava o protagonismo das mulheres? E nenhuma daquelas mulheres era sapatão, como ela? Por isso, quando foi submeter um projeto de pesquisa para o mestrado, em 2019, estava decidida a explorar essa história oculta das mulheres retratadas na exposição. Essa escolha era, também, uma brincadeira com o amigo Marcondes Rocco, artista plástico sempre presente no Museu, que a tinha provocado para pesquisar o tema. Quando ele falece devido à Covid em 2021, ela quase desiste do mestrado, porém mais uma vez é motivada por mulheres. A dona Almerinda entra em cena novamente:

Dayana (canto direito) com a mãe e a avó. Foto: arquivo pessoal.

“Minha filha, eu preparei você a vida inteira para você falar da Maré. Você vai me dizer que você não sabe falar da Maré? Acha um negócio pra falar. Fala nem que seja da gente”.

Almerinda, 104 anos, avó de Dayana
Dona Orosina foi um exu

O ponto de partida da pesquisa, então, seria a avó de Dayana, mas quando ela volta a pisar no Museu, como uma mulher de religião de matriz africana, ela sente muito fortes as influências de Orosina Vieira, a primeira moradora da Maré. Dayana começa, então, a investigar mais a fundo a história desta benzedeira e parteira, que lutou pelas melhorias na favela e contra os abusos do Estado, e começa a ter certeza que a Exu Orosina Vieira habita todas as encruzilhadas da Maré.

Foto: Raysa Castro.

Para conectar passado e presente, ela escolhe então três muros da Maré para falar sobre. Dois são o muro do Museu da Maré, no Morro do Timbau, grafitado com a imagem de Orosina Vieira, e o muro do CIEP Gustavo Capanema, escola onde foi grafitada uma foto de Bruna Silva e seu filho Marcus Vinícius, como uma homenagem ao adolescente assassinado em operação policial em 2018. O terceiro é, na verdade, uma casa na “Divisa”, localizada entre Nova Holanda e Baixa do Sapateiro, que marca o limite entre as duas facções do território há mais de 20 anos, e onde muita gente já morreu. Essa casa, marcada por sucessivas camadas de argamassa e tinta para esconder os furos, hoje sustenta também uma homenagem a todos que ali perderam a vida.

Casa da Divisa, em foto de Bira Carvalho, também falecido e homenageado na pesquisa.
Bruna Silva posando em frente ao muro do CIEP Gustavo Capanema. Foto reproduzida na dissertação.
Grafite de Orosina Vieira no muro do Museu da Maré. Foto: Raysa Castro.

Na pesquisa, a Dayana colhe depoimentos de cinco mulheres sobre esses muros: Cláudia Rose, coordenadora do Museu da Maré; Marilene Nunes, contadora de histórias do Museu; Vera Marta Vieira, sobrinha-neta de Orosina Vieira; Bruna Silva, mãe do Marcus Vinícius; e Camila Felippe, jovem estudante envolvida em lutas em prol de mulheres LGBT e também movimentos de arte e cultura. Todas elas falam sobre suas relações com os muros, dão suas opiniões sobre o processo de resgate da memória que acontece via muros e também sobre a luta das mulheres por direitos, e mandam um recado para Orosina Vieira.

Ao longo do texto, então, Dayana defende que todos esses muros são muros que impactam quem passa por eles e, ao mesmo tempo, impõem respeito e têm a “energia da correria”. Seja porque nenhum corpo sustenta ficar parado na Divisa, seja porque o Museu fica no caminho entre as vias expressas do Rio de Janeiro, ou porque o CIEP, também chamado de Brizolão, é caminho para os que trabalham e estudam de dia, e os que festejam de noite. Para ela, nesses muros a memória do passado está presente, e sobretudo na Casa da Divisa os vivos e os mortos se conectam; os tempos se encontram. Essa hipótese, no trabalho da assistente social, está em conceitos como o tempo espiralar de Leda Martins e o tempo fluido de Walter Benjamin, mas também na tradição iorubá: o criador dessas espirais do tempo é Exu.

Dayana com sua Yalorixa Lenira d’Oxum, que também foi uma das “professoras” no processo. Foto: arquivo pessoal.

Essa característica do tempo se repete nas mulheres que hoje ocupam as diversas frentes de luta da Maré, seja da alimentação, da saúde, da educação, da segurança pública, porque foram precedidas lá atrás por Orosina Vieira. Andando sempre com ervas para curar, um revólver para se defender e um facão para abrir caminho numa Maré “desbravada”, é como se ela quisesse dizer que vai estar sempre de punho erguido e pronta para se defender.

“Para mim a Orosina foi um exu, porque se ela não tivesse arrumado briga a gente não estaria aqui”.

Dayana Gusmão
Um trabalho para além do território

Se você leu até aqui, você provavelmente quer saber quem estava na banca de mestrado da Dayana, mas vamos colar os tempos do início e do final do texto para você: eram Andréa Lopes, Manoel Lima e Luis Antonio Baptista (os três professores da Unirio); a sobrinha-neta de Orosina, Vera Marta; a contadora de histórias e gestora da Biblioteca Elias José, Marilene Nunes; e também Mãe Lenira d’Oxum, que é Yalorixa da casa de candomblé da Dayana e a ajudou no processo de escrita. Em consenso, as seis pessoas lhe concederam a nota 10.

Dayana com sua banca de mestrado. Foto: arquivo pessoal.

A próxima parada da pesquisa da Dayana é o Congresso Sankofa 2024, marcado para ser realizado em Gana, na África, entre os dias 1º e 05 de julho. Mas, uma vez que recentemente entrou em vigor no país uma lei anti-LGBT, o Congresso será online. A proposta do evento, que este ano leva o tema “Earth, Pandemics, Gender and Religion Conference” (Conferência Terra, Pandemia, Gênero e Religião) é reunir pesquisadores e pesquisadoras do mundo todo para falar de ancestralidade. A Dayana pretende, também, tornar sua pesquisa uma das obras disponíveis para consulta no Arquivo Dona Orosina Vieira no Museu da Maré, e já está aprovada para cursar o doutorado em Memória Social também na UNIRIO.

Para ler a dissertação da mestre em Memória Social Dayana Gusmão, clique aqui.

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