E das experiências de luta, nasceu o CEASM

Geral, Memória

A criação do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré, no ano de 1997, só pode ser compreendida dentro do contexto político em que ela se insere, como também a partir das próprias trajetórias sociais e de militância construídas por cada fundador. O ato de fundar o CEASM não poderia ser explicado apenas por uma visão voluntarista de um grupo de pessoas que num belo dia decidiu montar uma instituição. Não teria, de fato, muito sentido, caso essa história fosse contada a partir desse ponto de vista. A grande questão é que o surgimento do CEASM nos anos finais da década de 1990 está plenamente conectado com aspectos históricos, que vão desde uma conjuntura macropolítica sustentada na consolidação de políticas neoliberais no Brasil até uma conjuntura de mudanças locais caracterizadas por uma diversificação de atores sociais e de movimentos populares, na luta por melhor qualidade de vida, defendendo pautas como o acesso à educação universitária pública e de qualidade, o direito à memória e à comunicação comunitária.

Era uma época, por exemplo, em que o país estava sob a administração de um tipo de governo que não acreditava (por princípio) que as políticas sociais de amparo à população tinham que ser de responsabilidade do Estado (será que voltamos hoje ao passado?). Por outro lado, os movimentos sociais, que sempre tinham lutado por uma sociedade mais justa, cada vez mais se mostravam convencidos de que as velhas lutas, por meio apenas da militância político-partidária, não conseguiam mais dar conta de tantas demandas que surgiam em meio ao povo.

Os caminhos prévios de cada um

É justamente dentro desse contexto que se torna possível entender com mais propriedade as trajetórias sociais de cada um dos fundadores do CEASM. Esse núcleo de jovens moradores e ex-moradores da Maré possuía, por exemplo, uma forte influência partidária, através de sua proximidade ideológica com o Partido dos Trabalhadores (PT), que desempenhou importante papel no processo de (re) democratização do Brasil, ao longo dos anos de 1980. Eram, portanto, pessoas que tinham uma sólida formação de lutas para a reivindicação de mudanças estruturais na sociedade e tentaram, a partir dessas experiências, intervir em espaços de favela como a Maré, no intuito de alcançar alguma mudança de caráter mais sólido e efetivo.

Alguns desses fundadores, muito antes da existência do CEASM, já atuavam como lideranças em suas respectivas localidades, principalmente no âmbito das Associações de Moradores. Nessa ocasião, as pautas reivindicatórias ainda se centravam basicamente em questões de infraestrutura local, como a necessidade de melhor distribuição da água, esgotamento sanitário adequado, calçamento de ruas, ou ainda a garantia de energia elétrica para todos e a coleta de lixo ampliada. Eram pautas que estavam mais diretamente ligadas a uma questão de sobrevivência imediata diante do histórico descaso das autoridades com regiões de periferia urbana. Mas o principal fator que uniu aqueles jovens em torno de um mesmo objetivo foi a necessidade de lutar não apenas por questões de caráter mais imediatista, mas também por finalidades mais subjetivas e duradouras. Lutar, nessa perspectiva, por pautas que ajudassem na construção de uma consciência crítica entre os moradores. Lutar por maior valorização da história local. E lutar também pelo constante reconhecimento do saber popular e da capacidade de resistência e resiliência das populações faveladas.

Já no que diz respeito à preocupação com a formação de consciências contestadoras, certamente, outras duas grandes influências também exerceram um papel decisivo no planejamento da ação dessas pessoas. A chamada Teologia da Libertação e o pensamento social do Educador Paulo Freire se constituem, nesse sentido, como pilares essenciais na construção do CEASM, orientando sua proposta de intervenção na realidade local, bem como propiciando as bases teóricas centrais que vão sustentar todo o trabalho desenvolvido pela instituição. Ou seja, o CEASM nasce enquanto iniciativa militante, embasada em uma PEDAGOGIA LIBERTADORA, tendo basicamente três objetivos principais, que podemos elencar aqui: desvelar, junto aos oprimidos, as correntes de opressão que os submetem aos poderosos, construir uma educação popular livre das imposições de conhecimento hierarquizado; formar uma consciência cidadã pautada em ações transformadoras da realidade social.

A maioria dos fundadores do CEASM era frequentadora da Igreja Católica e estava alinhada ao pensamento progressista da Teologia da Libertação, assim como também estava alinhada ao pensamento pedagógico freireano. Foi justamente a associação dessas influências às experiências de militância partidária e de inserção na comunidade que tornou possível, na prática, a fundação do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré.

A proliferação das ONGs e o compromisso com a favela

Esse foi um período de intensa multiplicação das chamadas Organizações Não Governamentais (ONGs) em todo o país, dentro daquele contexto político que está diretamente ligado aos governos da época, negligentes com suas responsabilidades sociais. A fundação do CEASM, portanto, não pode ser compreendida deslocada desse processo. No entanto, os fundadores sabiam e tinham a consciência das contradições que estavam implicadas na criação de uma ONG e, diante disso, optaram por ressaltar os aspectos que diferenciariam essa iniciativa de tantas outras que estavam sendo gestadas pela cidade.

Tratava-se, nesse sentido, de exaltar, por exemplo, o fato de o CEASM ser uma ONG organizada por pessoas de dentro do território e, portanto, por militantes que não carregavam consigo, os velhos estereótipos sociais depreciativos sobre a favela e que poderiam, nessa perspectiva, trabalhar com maior compreensão das necessidades dos moradores (muito diferente da maioria das instituições filantrópicas, que vinham de fora e que, em geral, atuavam tão somente através da velha lógica do clientelismo e do voluntariado). Além disso, os fundadores do CEASM deixaram claro que não tinham a pretensão de substituir as obrigações do Estado junto à população mais pobre. A ideia, ao contrário, era a de trabalhar em parcerias com instituições diversas, sempre com a finalidade de construir exemplos bem sucedidos de ações sociais na Maré e que poderiam perfeitamente orientar ou serem transformadas em políticas públicas.

A partir então dessa conjuntura social, que marcou a década de 1990, somada às trajetórias políticas de cada um daqueles jovens moradores e ex-moradores da Maré, tornou-se possível a fundação desse lugar, que completa 23 anos de existência em agosto de 2020. Uma instituição que desde o seu início teve como objeto se tornar um CENTRO de referência para favela por meio de seus projetos sociais. Um ambiente de permanecente reflexão e ESTUDOS que se convertem em AÇÕES concretas. Uma organização que trabalha com base na SOLIDARIEDADE e empatia pelas necessidades do outro e que escolheu a MARÉ como seu espaço primordial de atuação.

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