Cancelar o ENEM para não cancelar o direito à Educação
Francisco Overlande
Professor de História da rede pública do Estado, educador popular e membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas Sociais do CEASM (NEPS-CEASM)
“Os estudantes das camadas populares estarão em situação de igualdade, se comparados com a realidade material de outros grupos, para a realização do ENEM?”
O debate sobre a manutenção da data do ENEM dividiu as opiniões, criando um cenário de posições a favor e contra. Este texto contempla o grupo dos estudantes das escolas públicas, dos pré-vestibulares comunitários e educadores que, desde o início, vêm se posicionando contra a realização do ENEM. O CEASM, entendendo a legitimidade desse movimento, já existente, vem fazer a sua autocrítica em relação a sua opinião anterior e assumindo a defesa de cancelamento do ENEM.
A resposta sugerida no título desse texto nos permite uma chave de leitura para o atual momento que estamos vivendo. A Educação, enquanto direito, é uma conquista da luta dos movimentos sociais e de determinados grupos da sociedade que entendem a importância da democratização, universalização do acesso a esse direito fundamental como processo de construção de uma nova sociedade, de outro projeto de civilização, mais humano. A Constituição Federal de 1988 assegura no artigo 205 que: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. O Estado enquanto gestor do dinheiro público é quem deve, na escuta das demandas sociais, viabilizar o que está escrito no texto constituinte, sempre no sentido da inclusão. A chegada da Pandemia do novo Coronavírus (COVID-19) agravou o abismo social, existente, que dificultava a permanência e acesso às oportunidades, e aos espaços de educação.
A pandemia veio contradizer toda e qualquer fala que recitava o mantra liberal de reivindicação de um Estado Mínimo, mínimo nos direitos, na redução das desigualdades sociais, porém, Máximo nas retiradas de direitos, na criminalização dos empobrecidos que desde sempre “vigiou e puniu” através das políticas públicas de segurança. A desigualdade social e a precarização nas condições de trabalho dos professores são fatores desconsiderados nas avaliações dos inúmeros desafios existentes no cotidiano das salas de aula, do processo de ensino-aprendizagem.
Diante deste cenário, em plena pandemia, emerge o debate sobre a manutenção do calendário do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), que desde 2009 é o formato de avaliação para ingresso no Ensino Superior no Brasil. Como realizar esse debate considerando que o ENEM, enquanto forma de ingresso à universidade, reproduz as desvantagens e os privilégios de uma sociedade organizada por estigmas de raça, classe e gênero no que tange o acesso aos direitos sociais?
Os estudantes empobrecidos, que já enfrentavam dificuldades no “pré-pandemia”, sem as mínimas condições materiais para um “espaço” de estudo adequado, sofrem, também, a dura realidade do agravamento das condições materiais, das condições psicológicas, da novidade de “ensino remoto” sem equipamentos e estrutura, das inseguranças, ou seja, da lógica de um Estado que aponta para a restrição do acesso à Educação enquanto direito.
Houve uma mobilização em nível nacional que agregou organizações estudantis, movimentos sociais e grupos da sociedade civil posicionando-se sobre o adiamento das datas das provas como alternativa à realização do ENEM, o que só reforçaria esse cenário de exclusão social, agora, também, sob a forma de exclusão digital. Diversas vozes, em meio ao momento de dor pelas vítimas da pandemia, se uniram pelo adiamento do calendário do ENEM através do “ADIA ENEM”.
Sem nenhum debate que explique a real situação da Educação no Brasil, o MEC tentou pautar as ações dos movimentos sociais, através de uma enquete para a escolha das possíveis datas, adotando uma postura que se pretendia ser “democrática”, contraditoriamente, num governo que, declaradamente, não tem compromisso com a vida, com os direitos humanos, com esforços na redução/veliminação das desigualdades sociais, com a Educação e flerta com valores fascistas. O MEC ignorou totalmente o resultado realizado da pesquisa e impôs o mês de janeiro para a realização do ENEM. Fica o aprendizado de que definitivamente não é possível negociar com o opressor.
O “Novo Normal” não nos contempla, dado que reforça a naturalização das desigualdades sociais através do discurso de superação, maquiagem do discurso de meritocracia, transferindo toda a responsabilidade para os ombros dos estudantes, desconsiderando a interferência das estruturas sociais na vida destes jovens.
Estamos em um processo de adaptação a uma nova realidade imposta pelo isolamento social em virtude da pandemia, e realmente não temos muitas respostas para o que estamos vivendo, inclusive a resposta para a cura, mas neste momento em que o Brasil passa da marca dolorosa de 110 mil mortes, vítimas da pandemia, e que tentar se manter vivo já tem consumido grande parte das nossas energias, defender a manutenção do calendário do ENEM seria referendar a lógica de um governo sem compromisso com as camadas populares.
Em uma sociedade pautada por justiça social o ENEM não existiria como forma de ingresso à universidade, tendo em vista que em uma sociedade classista as oportunidades para as filhas e filhos da classe trabalhadora não são as mesmas, se comparadas à realidade material de outros grupos. O Sol não nasce para todos e o “novo normal” não rompeu com as estruturas sociais alicerçadas em uma sociedade de privilégios de classe, raça e gênero, que seleciona quem vai e quem fica.
Adiar o Enem por dois ou três meses não resolve, de fato, o problema dos estudantes empobrecidos, é preciso que o Estado ofereça uma alternativa que permita reduzir os danos, causados pela desigualdade social e agravados pela pandemia, para os jovens das camadas populares. Uma alternativa que crie as devidas oportunidades para que eles estejam incluídos nas devidas condições de realização desta avaliação, que é bem representativa da nossa sociedade dos privilégios e que ainda insiste em existir.
Cancelar o ENEM é exigir que o Estado disponibilize um projeto que forneça o necessário para que os estudantes das camadas populares tenham condições de realizar as provas, considerando as dificuldades, já existentes, agravadas com a chegada da pandemia
“Seria uma atitude ingênua esperar que as classes dominantes desenvolvessem uma forma de educação que proporcionasse às classes dominadas perceber as injustiças sociais de maneira crítica.” – Paulo Freire
Abraço afetuoso nos estudantes!