
Conheça a Favela da Kelson’s (1948)
Texto original de Anderson Gonçalves (2016); atualizado em 2025 por Carolina Vaz
Com informações de Anderson Gonçalves, G1, Rio on Watch e Walmyr Júnior
Foto de capa: Ana Cristina da Silva
A Comunidade Marcílio Dias é também conhecida popularmente como Favela da Kelson’s, foi formada na antiga Praia da Moreninha, entre os terrenos da Casa do Marinheiro e da fábrica de couro Kelson’s. Sua fundação se localiza entre as décadas de 1930 e 1940, por oito famílias de pescadores que ali ergueram palafitas. O seu nome oficial é uma homenagem ao marinheiro da Armada Imperial Brasileira, Marcílio Dias.
Em 1982 a comunidade Marcílio Dias recebeu uma visitante ilustre: ganhadora do prêmio Nobel da Paz em 1979 Madre Tereza de Calcutá visitou a favela e com essa visita e a insistência da pastoral de favelas, a Marcílio Dias teve direito ao território.

Curiosidade: A tradicional Avenida Lobo Junior é considerada uma das colunas da Penha. Responsável pela ligação com a Avenida Brasil, espinha dorsal da Cidade do Rio de Janeiro, foi também um marco da urbanização do bairro que era agrário e virou um polo industrial na década de 1970. O que poucos sabem é que ela começa dentro da Maré! Tem início em frente ao Cais da Kelson’s.
A comunidade de Marcílio Dias cresceu com a construção do conjunto habitacional na época do Projeto Rio. É a comunidade mais distante do restante da Maré, por ser dividida pela área militar da Marinha.
Atualmente conta com uma população estimada em até 10.000 pessoas, e um comércio de pequeno porte.
Saiba mais sobre a favela e seus moradores (2025):
Esteticamente, comparando com as demais favelas do Conjunto, a Kelson’s é diferente: tem ruas largas, onde passam poucos carros e motos, os moradores se locomovem tranquilamente de bicicleta e as crianças também aproveitam o espaço com bicicleta, patins e skate. Uma paisagem de destaque na favela é o Cais da Kelson’s, uma pequena parte do que um dia foi a Praia da Moreninha. Era, no passado, um importante ponto de encontro para pescadores que dali partiam de madrugada e voltavam da pesca só de tarde. No próprio cais eles vendiam o peixe, siri, camarão…

Quem conta parte dessa história é o ex-pescador Luiz Carlos da Conceição, mais conhecido como Paródia, de 73 anos. Ele chegou no Rio de Janeiro com a família por volta dos 10 anos de idade, e já nessa época começou a ir pro mar.
“Saía duas da madrugada, quando era seis horas a gente vinha pra vender o camarão… eu ia pro lado de Mauá, essas beiradas de praia todinhas aqui” – Seu Paródia
Ele já pescou camarão e siri de canoa, mas por volta dos 20 anos começou a sair de traineira, um barco maior onde a pesca é feita por rede, e assim começou a comercializar pescado. Naquela época, a pescaria rendia muito: os pescadores chegavam do mar com quantidade de peixe boa para vender aos clientes que ficavam no cais. Ele contou, na verdade, que na pescaria o rendimento do trabalho sempre varia: “Tem dia que dá pouco, tem dia que ‘mata’ 100, ‘mata’ 200 quilos, tem dia que mata 20 quilos. É assim. Pescaria é assim, a gente vai e não sabe…”. Mesmo assim, era melhor do que é hoje, quando a Baía de Guanabara está muito mais suja.

Um dos filhos do seu Paródia, o Luiz Alves (ou Luizinho), também continua no ramo do peixe: ele tem uma banquinha de venda de peixe na favela, e conta com o trabalho dos irmãos peixeiros Lucas Santos, de 17 anos, e Luan Santos, de 19. Eles recebem encomenda pelo “zap”, atendem quem chega na banquinha e preparam ali mesmo a limpeza do peixe. O Luizinho traz esse peixe não do cais a menos de 1km dali, mas do CEASA, em Irajá. Ele também já foi pescador, mas por pouco tempo, já que a produtividade é cada vez mais incerta: “Hoje o quilo da corvina está 3 reais, mas você vai pro mar na sorte, tem dia que você volta com 200 kg, tem dia que volta com 10 kg, não compensa nem o gelo que tu compra”.
Estrutura de transporte, saúde e educação
Uma informação importante é que, embora a Kelson’s seja reconhecida como uma das favelas da Maré, por uma identificação histórica, cultural e de outros aspectos, oficialmente está vinculada ao bairro Penha Circular, pertencendo à XI Região Administrativa do município (Penha) e não à XXX (Maré).
A favela se localiza na fronteira com a Baía de Guanabara, e sua entrada é indicada por uma placa na Avenida Brasil; só entrando pela Avenida Lobo Júnior ela poderá ser acessada. Estar “escondido” tem seus malefícios: apesar de ser oficialmente parte do bairro Penha Circular, um bairro com grande circulação de ônibus, eles não entram na Kelson’s. O único transporte público que chega é a van que faz Kelson’s x Penha, com ponto final e inicial no Carioca Shopping. A van circula uma parte da Kelson’s deixando e buscando moradores, principalmente adultos, adolescentes e jovens.
Uma das características dessa favela tranquila, aos olhos de quem vem de outras favelas cariocas, é ter relativamente pouco comércio e serviços, portanto poucos postos de emprego, e apenas duas escolas públicas. Para o ensino infantil, existe a Creche Rebral, uma concessão da prefeitura do Rio de Janeiro, com acesso público e gratuito. Outras creches particulares estão no território também. A Escola Municipal Cantor e Compositor Gonzaguinha é a única pública para crianças maiores, porém só atende até o 5º ano do Ensino Fundamental. A favela também conta com outras escolas particulares, mas todas de Ensino Fundamental, deixando os adolescentes e jovens sem opção.

Na Saúde já é um pouco diferente: a única opção, sem alternativa no particular, é o CMS João Cândido, onde é possível realizar consultas, vacinação e outros atendimentos de baixa complexidade. A depender do especialista, a equipe encaminha para outra Clínica da Família ou CMS, e em caso de emergência é preciso sair para a UPA da Maré, Hospital Geral de Bonsucesso ou outras unidades. O CMS João Cândido também conta com o trabalho dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS), a maioria “cria” do território.

Lazer para a criançada
A principal área de lazer da favela é o Campo da Kelson’s, um campo de futebol ao lado de uma pracinha com banquinhos e quiosques. É naquele campo de futebol que se executam alguns projetos para as crianças e adolescentes, criados pelos próprios moradores. Um deles é o Projeto Comunitário, que acolhe crianças entre 10 e 15 anos de idade, aproximadamente.

Às sextas, o Projeto oferece aula de muay thai. De segunda a quinta-feira, elas praticam futebol no campo, sempre contando com a oração e o aquecimento antes do jogo em si. Quem comanda cerca de 100 crianças é a Fátima Santos, de 21 anos, mais conhecida como Fatinha, e ela conta que o principal objetivo é dar uma ocupação às crianças do território: “Não tinha nada para as crianças, a gente via eles fazendo brincadeira de coisa que não deve, de arminha (…) às vezes a gente leva eles pra jogar com outro time, eles jogam, brincam, tiram foto, jogam no grupo”. Mesmo com uma finalidade mais recreativa do que profissionalizante, ela lamenta que eles tenham poucos recursos para o básico: as crianças não têm colete para treinar, muitos sequer têm meião e a chuteira apropriada. Para a quantidade de crianças que participam, os apoios em dinheiro e material são insuficientes. Mesmo assim, o grupo já recebeu algumas doações de grande porte, passando de 100 chuteiras de fontes diversas como a PUC-Rio e o G10 favelas. Moradores ativos nos projetos do bairro, como Jedai e Walmyr, são alguns dos que fazem a ponte para o apoio.
Outro grupo que utiliza o campo é o Associação Kelson’s Futebol Club, o AKFC, do treinador André. Trata-se de um time de adolescentes e jovens mais voltado para a profissionalização, que inclusive participa da Taça das Favelas e viabiliza testes em times maiores.

Outro projeto de destaque na Kelson’s é a Horta-Escola Comunitária Maria Angu, localizada bem em frente à Associação de Moradores, na entrada da favela. A horta foi criada em abril de 2021, como projeto de extensão da PUC-Rio, e comandanda pelo historiador e mobilizador social Walmyr Júnior. Ela é mantida por colaboradores do projeto, de dentro do território e de fora, e tem mutirões periódicos divulgados pelo Instagram @hortamariaangu . Os alimentos, quando prontos para o consumo, são encaminhados a unidades de educação do território.
Mais sobre a história da Kelson’s e a resistência de seus moradores
Segundo o historiador e morador Walmyr Júnior , o conjunto habitacional Marcílio Dias até a década de 1960 era conhecido apenas como Praia da Moreninha. Afirma-se que a ocupação por moradores começou entre as décadas de 1930 e 1940, sendo principalmente pescadores, migrantes vindos do nordeste e moradores de favelas removidas no entorno da Maré e Leopoldina; como em muitas partes da Maré, essas residências eram palafitas sobre o mar. Aquela área da Baía de Guanabara era muito frequentada por pescadores, de dentro e de fora do território.
Em 1956 o presidente Juscelino Kubitschek concede à Igreja Católica, os terrenos de marinha situados no litoral da Penha. Um dos objetivos era que a igreja comercializasse o terreno para o desenvolvimento de construções de conjuntos residenciais, como a Cruzada São Sebastião no Leblon e Parque alegria no Caju. No local da área alagadiça aterrada foi construído o Mercado São Sebastião, onde até hoje está a bolsa de gêneros alimentícios do Rio de Janeiro. Em meados dos anos 1960, favelas próximas viviam o processo de remoção, a exemplo da Maria Angu, também localizada em beira de praia, mas Kelson’s resistiu a essas pressões apoiada, principalmente, pela Pastoral de Favelas da igreja católica. A favela já tinha casas sobre “chão firme”, pois as primeiras casas de madeiras foram construídas para os trabalhadores da fábrica de couro Kelson’s; era a Vila Kelson’s. Mas até os anos 1980 as palafitas permaneceram.
No início dos anos 1980, o Estaleiro Engenharia & Máquinas S.A., empresa mais conhecida como EMAQ, iniciou um processo de aterramento da área alagada, para que o próprio estaleiro tivesse sua saída para o mar. Apesar de a Justiça se posicionar a favor dos moradores, assim como a Pastoral de Favelas, o aterramento continuou e o esgoto da comunidade ficou sem caimento, chegando a haver entrada da água do mar na casa dos moradores. Este aterramento bloqueou o acesso da favela ao mar, prejudicando principalmente os pescadores.

Em 26 de setembro de 1982, Marcílio Dias recebe a visita da Madre Tereza de Calcutá, vencedora do Prêmio Nobel da Paz em 1979, via articulação do Arcebispo Dom Eugênio Sales e da Pastoral de Favelas.
Nessa mesma época, a Marcílio Dias era uma das favelas onde se almejava executar programas governamentais como Projeto Rio de Programa João de Barro, relativos, na teoria, a urbanização. Organizados, os moradores expressavam que seu maior desejo era não haver a remoção da população para um local distante; portanto uma futura remoção só poderia ocorrer em terreno aterrado próximo. A visita da Madre Tereza é considerada um fato fundamental para que a remoção de fato não acontecesse.
O resultado foi o nascimento de um programa de autoconstrução dos moradores, através do Programa João de Barro. Eram verdadeiros mutirões para a construção das casas, e foi assim que a população da Marcílio Dias saiu das palafitas sem sair do território. Observando a atual paisagem da favela, pode-se afirmar que muitas das casas construídas nessa época continuam de pé, e os moradores são, em grande parte, descendentes dos que chegaram nas primeiras décadas de ocupação.
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