
Dia de todas as mães: o cuidado compartilhado na favela
Texto por Carolina Vaz
Entrevistas: Ana Cristina da Silva, Carolina Vaz e Christóvão Carvalho
Foto de capa: Ana Cristina da Silva
Na foto de capa, da esquerda para a direita: Georgina Balbino, Débora Balbino, Samuel, Joaquim e María Emília Balbino.
“Ser mãe não é fácil, no mundo em que a gente vive. Na minha época eu acho que era até um pouco mais fácil, eu fico preocupada com os meus netos (…) Porque esse mundo tá muito perdido, você cria de um jeito em casa, mas não sabe o que lá fora eles vão passar”.
O depoimento vem de Maria Emília Balbino, moradora do Parque Rubens Vaz de 57 anos, em entrevista à equipe do Jornal numa manhã normal de quarta-feira. E o que é esse “normal” no prédio da família Balbino? São quatro gerações presentes na casa do térreo: a dona da casa, Georgina, de 88 anos; sua filha Maria Emília; a neta Débora, de 35 anos; e os bisnetos Joaquim e Samuel. Na rua Maçaranduba, as quatro gerações da família ocupam os 3 andares do mesmo prédio, o que proporciona um ciclo de cuidado que vem de muitos anos.
A dona Georgina, mineira da cidade de Carangola e moradora da Maré há mais de 50 anos, não só criou seus quatro filhos e cinco netos, como até hoje cuida dos bisnetos, que também contam cinco. Nessa vida ela já “olhou” muito outras crianças da vizinhança – que hoje não são mais crianças – como ela conta: “Eu já olhei muita criança aqui, nossa senhora! Eu cuidei da Bruna, do Gabriel, eu já cuidei do ‘imbigo’ do Maurício!”. Ela é um símbolo dessa tradição histórica nas favelas e periferias de cuidar de criança em casa, independente de ser filho, e que é tão necessária para que as mães possam trabalhar, estudar e cumprir com seus compromissos.

A filha de Georgina, que até hoje ela chama de Emilinha, seguiu o mesmo costume. Emilinha teve um filho, que mora ali também, e que lhe deu 3 netos. Atualmente, sua rotina é cuidar deles. Quando o filho era criança, ela trabalhava fora e deixava ele com sua mãe; só nas folgas é que podia levar para passear, conciliando com os cuidados da casa e outros compromissos. Hoje ela tem seus afazeres: hidroginástica, musculação e outras atividades para cuidar de si, como Emília fala, mas é com todo o prazer que ela cuida dos netos assim como sua mãe fez. “Não é toda mãe que quer cuidar dos netos, né? Geralmente a mãe fala ‘Ah, agora eu quero viver a minha vida’ (…) Estar com eles é viver a minha vida muito bem, cuidando deles, vendo o crescimento deles, pra mim é uma recompensa, não existe coisa melhor!”.
A rotina já é diferente para a neta, Débora, hoje com 35 anos. Ela é mãe do Caíque, de 13, e do Samuel, de um. Débora engravidou aos 21 anos, e conta que na hora foi um choque, mas “quando nasce, tudo muda”. Ela trabalhou por toda a gravidez, depois tirou apenas 3 meses de licença-maternidade; quem passou a tomar conta do Caíque durante o dia foi a Sandra, mãe de um amigo seu. Mas, assim como a dona Georgina criou os filhos trabalhando na roça e ensinando o trabalho doméstico, a Débora fez o mesmo com o primeiro filho, que hoje já sabe cozinhar e cuidar da casa, deixando a mãe menos preocupada. “Ele já se vira sozinho”, ela conta. O pequeno já precisa ficar com a cuidadora para a Débora e o marido poderem trabalhar.

Ela reconhece tudo de que precisou abrir mão para criar os filhos, principalmente o mais velho: “Muda tudo! O senso de responsabilidade, você querer e não poder… eu sou uma pessoa que gostava muito de sair, balada (…) você fica chateada, mas depois a criança cresce tão rápido que você pensa: vai passar! E realmente passa”.
No dia de hoje, 11 de maio, a família Balbino está toda reunida na casa da Dona Georgina, provavelmente fazendo um bom churrasco, complementado pelos pratos que as noras levam. A Débora comenta: “Todo mundo vem pra minha avó. Por isso que eu falo, ela é a liga do bolo! No dia das mães, Semana Santa, todo mundo aqui, mesmo sem combinar”.
A rotina de Bianca na Vila dos Pinheiros
Assim como para Débora, a gravidez também foi um choque para a Bianca Barbosa, moradora da Vila dos Pinheiros, de 25 anos; na época ela tinha só 19. “Eu falei: meu Deus, como eu vou contar pra minha família?” Aos poucos, todo mundo começou a aceitar, e a amar a criança mesmo antes de nascer. Atriz e produtora do grupo Entre Lugares, Bianca continuou trabalhando até o final da gravidez e assim conseguiu comprar o enxoval do bebê sozinha.
Ela se emocionou ao lembrar do parto da filha, pois houve uma série de complicações: a equipe do hospital queria que o nascimento fosse de parto normal, mas um exame do coração revelou que a criança não estava bem. Após a cesárea, foi necessário reanimar a Bruna, que sobreviveu, mas no dia seguinte já foi internada na UTI pois estava com oxigênio no pulmão. A Bianca ia visitar todos os dias, sempre rezando pela recuperação da filha: “Eu cantava um louvor que falava ‘tu és fiel, Senhor, eu sei que tu és fiel’. E eu falava: independente de qualquer coisa eu não vou questionar, eu vou aceitar, são os planos de Deus'”. Foram cerca de 10 dias até a criança ter alta e ser levada para casa.
Na época, a Bianca morava com a família: os pais, irmã, cunhado e sobrinha. Mas, quando a Bruna tinha 3 meses chegou a pandemia e o isolamento, e sem poder trabalhar a atriz começou a sentir vergonha de não ter renda. Até o leite especial que a criança tinha que tomar era comprado pelo avô. Pensando em ter algum dinheiro sem sair de casa, a atriz começou a aprender confeitaria pelo YouTube e fazia doces para o cunhado vender no quartel: cone trufado, brownie, bolo de pote. Quando a família foi comemorar o primeiro “mêsversário” da Bruna, a mãe comprou um bolinho, de 45 reais. Ela conta: “Eu falei: ‘mãe, que bolo caro, no segundo mês quem vai fazer sou eu’”. Ela lembra que foi assim que começou a ser boleira, e hoje acha até graça em ter julgado como um bolo caro.

Uma nova profissão na pandemia
A criança não dormia de madrugada, então Bianca começou a assistir vídeos no YouTube nesse horário, ensinando a fazer bolos elaborados, e começou a testar a cada “mesversário” da criança. Até o dia em que uma amiga encomendou um bolo para o aniversário da filha, e a oração da confeiteira deu certo: a amiga, agora cliente, amou o bolo. A confeitaria foi sua principal fonte de renda na pandemia. Quando cessou o isolamento e Bianca pôde voltar a trabalhar no teatro, ela sempre levava Bruna junto. Quando esta tinha um ano e meio, as duas foram morar sozinhas na casa atual, na Vila dos Pinheiros, mas na mesma rua que a casa da mãe.
Por volta dos 2 anos de idade da Bruna, ela teve uma otite crônica que perfurou seus dois tímpanos; Bianca passou a percorrer hospitais e clínicas da família em busca de fazer os exames necessários, mas sofreu negligência. Ela notou que um dos exames, cujo pedido foi deixado na Clínica da Família, nunca entrava no aplicativo do SISREG, que mostra o andamento de cada procedimento no sistema. Um dia, tendo literalmente brigado para obter explicações, ela descobriu que tinham esquecido de incluir no sistema por dois meses. Quando Bruna conseguiu fazer o exame, chamado de PEATE (Potencial Evocado Auditivo do Tronco Encefálico), o laudo dizia que ela tinha perdido parte da audição nos dois ouvidos e teria que operar. Na época, ela já tinha quase quatro anos. Por mais um ano, não foi possível marcar a operação, pois a criança teve anemia, até que o médico responsável achou melhor repetir o exame. O resultado, obtido um dia após o aniversário de 5 anos da Bruna, surpreendeu: sem remédio, tratamento ou cirurgia, Bruna tinha recuperado a audição e estava curada.

“Eu creio que tudo que eu passei foi para Deus curar minha filha mesmo”. – Bianca Barbosa
Aos cinco anos, Bruna é uma criança saudável e ativa. Adora ver a mãe fazendo os bolos, chega a receber os clientes no portão e sempre vai às aulas do Entre Lugares. Ela fez até participação em uma das peças, a Lua da Maré.
A rede de apoio na família e vizinhança
A rotina de mãe e filha é típica de várias famílias da Maré: a Bruna fica na escola de 8h às 14h30, o que possibilita à Bianca fazer alguns de seus trabalhos domésticos e também remunerados; depois, ela busca a criança, mas às vezes a pequena prefere até ficar na casa da avó. Além de a Bianca poder fazer os bolos em casa e levar a filha para algumas atividades do teatro, o que também favorece é ter a mãe por perto, morando na mesma rua, e a irmã, apesar de morar em Ramos, também se faz presente. Nem sempre foi assim, já houve épocas em que ela só conseguia que alguém cuidasse da Bruna se ela pagasse; hoje as pessoas pedem pra cuidar.
Embora a atriz e confeiteira possa trabalhar de casa e tenha a família como rede de apoio, ela sente que não é assim com outras mães como ela. Várias precisam levar as crianças para todas as suas atividades e, inclusive, assim como ela, decidiram abrir negócio para aliviar essa rotina, principalmente na área da beleza. Todas estão “na correria”, e a própria Bianca ajuda buscando uma das crianças na escola quando necessário. Forma-se uma rede de mães que ajudam porque entendem as necessidades uma da outra.
A Bianca mãe
Sobre o que mudou nela ao se tornar mãe, ela diz que ficou “mais medrosa”, e também mais emotiva. “Eu acho que [ter a Bruna] me deu mais força para correr atrás também. Porque não é só o meu futuro, é o dela também, né? A gente que é mãe quer dar o exemplo para os nossos filhos, porque os nossos filhos são o nosso reflexo”. E mesmo podendo manter a rotina de levar a Bruna para a escola e buscar, levar junto em suas atividades, ela ainda se sente um pouco ausente. Seu desabafo poderia ser o de muitas mães que trabalham para dar o melhor aos filhos mas gostariam de ter mais momentos só com eles: “Eu costumo dizer: a gente trabalha tanto para não faltar nada que no final falta a gente”.
Um recado para as mães
Pedimos à família Balbino um recado para as mães da Maré, confira abaixo.

“Paciência que no final vai dar tudo certo. Se não deu certo ainda é porque não chegou no final”. – Débora Balbino
“Se ela tem alguma mágoa com a mãe dela ou com o filho ou filha, que ela perdoe. Porque não pode guardar mágoa… Mãe é tudo, ela hoje pode estar aqui, pode não estar amanhã, como a própria filha pode também. Então tem que perdoar, não pode ter mágoa no coração”. – Maria Emília Balbino
“Faça tudo o que pode, porque hoje a gente está aqui, amanhã a gente não tá mais. Faça tudo o que pode na vida”. – Georgina Balbino