
Maryana Oliveira: a artista que fez da favela seu grande palco
Texto e foto da capa: Ana Cristina da Silva
Consegue imaginar uma realidade onde você trabalha com aquilo que sempre te divertiu na infância? Maryana Oliveira sim. Afinal, ela vive essa realidade hoje. Pode até parecer capítulo de fanfic ou roteiro de série teen da Netflix, mas a mareense era uma criança agitada que dançava Bonde das Maravilhas escondida da mãe religiosa e, de repente, se transformou na jovem que subiu ao palco da primeira edição do festival The Town, após ter sido selecionada para dançar no balé da cantora Gloria Groove, dona dos hits “A Queda” e “Vermelho”.
Tudo começa pela rua São Jorge, na Nova Holanda, dançando funk para se divertir, mesmo que escondida da mãe. Porém, a primeira aula de dança foi aos 6 anos de idade, com algo que não a agradou tanto na época: o ballet. Basicamente, Maryana era aquela criança agitada e curiosa que ficava pra lá e pra cá o tempo inteiro. Por ser a filha caçula, toda vez que a mãe ia levar o irmão para a natação na Vila Olímpica Seu Amaro, Maryana tinha que acompanhar. “Eu devia ficar correndo e minha mãe ficava atrás de mim, sem conseguir ver o meu irmão. Aí acho que ela pensou: ‘Eu vou ter que dar uma função pra essa criança’. Acho que ela me colocou no ballet pra eu parar de perturbar mesmo”. Apesar de não ter gostado tanto do Ballet, logo ela entrou para a turma de Jazz. Hoje, aos 22 anos, Maryana é dançarina, atriz e professora de dança, uma realidade inimaginável para a sua pequena versão de 6 anos.

Maryana tem 22 anos e é a caçula de 3 irmãos, sendo também a primeira da família a seguir carreira artística. Foto: Larissa Vieira.
DANCE MARÉ
Quando tentamos imaginar a dança no universo cinematográfico pensamos em alguns filmes de sucesso como Ritmo Quente; Ela dança, eu Danço; Flashdance, mas se for para pensar em um filme que lembre a história de Maryana, esse filme é o Footlose, não pela semelhança exata entre realidade e roteiro e sim pelas divergências. Em Footlose o protagonista se muda para uma pequena cidade onde a igreja proibiu a dança e a música alta. Na história da mareense é quase que o oposto, foi graças a igreja que ela, junto dos amigos, deu vida a um dos maiores coletivos de dança da favela: o Dance Maré.
Criado pelo amigo e influencer Raphael Vicente, o Dance Maré surge em 2019, formado por ele, Maryana, Débora Lima e Maddu Reis. Na igreja eles faziam dança e teatro, mas foi a vontade de se permitir dançar outros estilos musicais, mostrando que aquilo não era errado, que fez surgir o Dance Maré. “A gente gostava muito de fazer as coreografias da igreja, mas as coreografias do mundo também eram muito legais, a gente queria muito dançar e a gente não via tanta maldade assim. Postamos vários vídeos na época e aí a gente foi colocando mais pessoas, tiramos algumas, outros tiveram que sair e hoje o Dance Maré é o que é”.

Atual formação do coletivo Dance Maré. Foto: Felipe Gama.
Com 8 integrantes, atualmente o perfil do Dance Maré conta com 32,2 mil seguidores no Instagram. Nas redes sociais o coletivo de dança publica vídeos com coreografias diferentes em diversos locais da favela da Maré. Entre seus maiores sucessos estão os clipes: “Waka Waka Remix”, publicado durante a última Copa do Mundo, e “This is Me”, que ao som da trilha sonora do musical “O Rei do Show”, exibe diferentes vivências de moradores da Maré. O grupo vem ocupando cada vez mais espaço em eventos, e este ano irá se apresentar no Palco Favela do festival Rock in Rio.
TEATRO
Muito envolvida com a dança, estando agora em um coletivo onde tinha a liberdade de se expressar nos mais diversos estilos musicais, Maryana queria mais. Foi quando teve a brilhante ideia de tentar o teatro. “Eu lembro que eu só fui fazer teatro porque eu falei assim: ‘Pô, minha mãe viu a apresentação da minha prima Júlia, eu acho que se eu fizer teatro ela não vai brigar tanto comigo’. Aí eu falei assim: ‘vou falar pra minha mãe que eu tô fazendo dança e teatro’. Mas, na verdade, eu ficava a semana toda dançando e o teatro era só uma vez na semana”. Essa sua primeira experiência com o teatro aconteceu em 2021, lá no Méier, onde apresentou seu primeiro espetáculo: o musical Hairspray. E, no fim das contas, sua mãe se tornou aquela pessoa especial na plateia que é o espetáculo da vida, pois apesar de tudo ela sempre esteve presente em cada novo caminho trilhado por Maryana.

Já no ano de 2022 Maryana ingressa no projeto Entre Lugares, que acontece no Museu da Maré. Há algo sobre estar no seu território, com pessoas que têm a mesma vivência que você que faz com que tudo tenha mais força, mais emoção. Ali ela ficou por 2 anos e participou de duas edições do Maré em Cena, o festival de cenas curtas do projeto. Em 2022, ao estrear apresentando O Rebu, Maryana ganhou dos jurados o prêmio de atriz revelação. Já em 2023, participou de Conselho de Classe e Uma Palavra Por Outra, ganhando nas categorias de Melhor Atriz, Segunda Melhor Cena pelo Júri e Melhor Cena pelo voto popular. “Foi muito legal ter feito o Rebu, porque eu nunca tinha feito uma coisa engraçada antes, esse lugar do melodrama. A experiência, o processo de criar foi muito legal, mais ainda porque eu danço e pude colocar essa consciência corporal dentro do teatro”.
Maryana então se despediu do Entre Lugares com um ‘até logo’ e focou na sua vontade de encarar novos desafios e aprender mais sobre dança, teatro, sobre a vida. Em setembro do ano passado conseguiu uma bolsa e passou a estudar na Casa das Artes de Laranjeiras (CAL), onde apresentou Bodas de Sangue, de Frederico García Lorca. “Foram três dias de espetáculo, duas sessões cada dia. Eu nunca tinha passado por isso. Foi assim, um corre muito grande”.

Maryana durante apresentação da cena “O Rebu”, que lhe rendeu o prêmio de atriz revelação. Foto: José Bismarck.
THE TOWN? QUERO!
Mas falando sobre as reviravoltas que a vida dá… Imagine ter 21 anos e receber uma mensagem no celular de ninguém mais e ninguém menos que Flávia Lima, coreografa de Grag Queen e Gloria Groove. O conteúdo? Nada de mais, apenas alguns áudios te convidando para fazer parte do balé da Gloria na primeira edição do The Town, em São Paulo. Qual seria a sua resposta? A de Maryana foi um simples, rápido e intuitivo: “Quero!”.
“Ela nem me seguia, ela curtiu várias coisas minhas, vários reels meus. Eu pensei: ‘Tá… estranho, mas beleza’. Aí ela me mandou mensagem e falou assim: ‘olha, tem uma oportunidade, mas depois eu falo contigo’. Eu pensei que ela iria me chamar para algum clipe, uma coisa assim desse tamanho, o que já seria grande. Aí depois ela vai me mandando um áudio, dois áudios… me perguntando se eu tinha disponibilidade de estar fazendo o The Town. Eu lembro que eu ouvi o áudio umas 5 ou 10 vezes, porque de primeira eu fiquei sem acreditar e depois eu não entendi o que ela falou. Eu pensei: ‘Gente, será que eu tô ficando maluca?’. Mas aí eu mandei meu WhatsApp para ela e falei assim: ‘quero!’”.
Com todas as informações dispostas sobre período, viagem, apresentação e cachê, a mareense concordou meio incerta. A primeira pessoa a ficar sabendo dessa história foi o amigo Raphael Vicente, que comemorou e a motivou. “Foi um bagulho muito rápido, porque a princípio eu teria que viajar pra São Paulo em duas semanas. Aí do nada ela falou assim: ‘então, eu preciso de você semana que vem’. Eu desesperada porque só tinha cinco dias pra me organizar, sendo que na época ainda tinha o festival do Entre Lugares que eu ia participar no sábado e na segunda eu tinha que estar em São Paulo”.

Faltando apenas 2 dias para ir para São Paulo, Maryana se apresentou no festival do Entre Lugares e ao lado de Brenda Aguiar e Raphael Vicente ganhou na categoria de segunda melhor cena. Foto: José Bismarck.
Leitor, eu acho que nem você esperava por isso. Imagine Maryana, a garota que ficava na rua São Jorge dançando Bonde das Maravilhas o mais distante possível da janela de casa pra não ser flagrada pela mãe. Imagine ela, em 2023, com 21 anos indo até os pais num dia qualquer e falando que teria que fazer uma viagem para São Paulo na semana seguinte para dançar no balé da Gloria Groove? Como dito lá em cima, parece coisa de fanfic. Por sorte, muito se sabe que nas fanfics os finais tendem a dar certo.
“Eu expliquei toda a situação. Como seria, que eu ia passar um tempo… Tentei deixar tudo pronto pra eles não ficarem tão desesperados. No final, depois de eu ter falado um monte de coisa, eles viraram pra mim e perguntaram: ‘Quem é Gloria Groove?!’. Eu botei um clipe dela na TV e eles falaram assim: ‘Caraca, ela é boa’. Mas ficou naquilo… minha mãe dizia: ‘vai falar com o seu pai’, e o meu pai: ‘vai falar com a sua mãe’. Aí eu expliquei que não estava pedindo, que estava avisando, porque eu não podia perder aquela oportunidade só porque eles estavam desesperados achando que era mentira ou que eu seria raptada, sei lá”.
No final deu tudo certo, os pais de Maryana a levaram até a rodoviária na segunda-feira e desejaram boa sorte. Impossível dizer que não houveram dias de choro, medo e ansiedade. Afinal, é como Maryana disse durante a entrevista: “Eu sou virginiana, quero fazer tudo perfeito’. Porém, ninguém melhor para citar agora do que Oswaldo Montenegro que, em sua música, canta: “Todo abismo é para poder voar”. A mareense conheceu Gloria Groove nos ensaios e se apresentou no palco do The Town com sucesso, sendo assistida pelos amigos que foram ao festival e pela família que se reuniu para acompanhar tudo pela TV com muito orgulho.
No final do dia, Maryana reconhece todo o cuidado e preocupação da família. A vida artística pode ser difícil, mais ainda para quem é mulher, preta e favelada. No entanto, mesmo preocupados, Nilza e José, pais da artista, sempre apoiaram os sonhos de Maryana e mostraram isso, seja na ajuda financeira ou com suas presenças e aplausos durante apresentações de dança e espetáculos teatrais. “Minha mãe nunca deixou de ir, de me incentivar a estudar e de orar por mim. Ela e o meu pai são as pessoas que me emprestam o cartão de passagem para ir e voltar da CAL, ele também ajuda financeiramente sempre que eu preciso e também vai nas minhas apresentações”.

Show da Gloria Groove no festival The Town, em São Paulo. Foto: Reprodução.
“Se eu tô no Balé da Gloria Groove, não foi porque um branco me deu a mão, não foi nenhum empresário, foi porque a Maré me deu a base para eu poder estar lá”.
Teve um tempo na vida de Maryana em que ela pensava que dançar era apenas diversão, que era impossível aquilo ser profissão. Começou dançando escondido da mãe e hoje vê a mãe toda orgulhosa mostrando seus vídeos de dança para as amigas. Houve um tempo, muito longo até, em que aquela criança da rua São Jorge não sabia o poder da palavra sonhar, mas então passou de uma atividade para controlar seu comportamento agitado até inúmeros palcos com vastas plateias que a aplaudiram de pé. Hoje ela sonha e por isso faz um mês que vem se empenhando para dar aula no Instituto Escrevendo o Futuro da Maré, para mostrar para outros mareenses que as palavras diversão, sonho, trabalho e futuro dão certo quando se misturam.