O Bolsonaro e a ditadura militar de 1964
Por Carlos Gonçalves
Quando eu era pequeno, talvez tivesse uns 8 anos de idade, eu morava em um apartamento na Maré (em uma parte chamada de Conjunto Esperança). Na época, e até hoje, considerado um espaço de baixa renda mas com uma estrutura minimamente boa comparada às demais moradias que tem por aqui. Eu não comentava muito sobre, mas a verdade é que eu não curtia tanto a ideia de morar em um apartamento. Era algo muito estranho para qualquer criança que quisesse brincar, mas como não tinha muitas opções ficava na minha, concentrado em assistir os meus desenhos.
De vez em quando presenciava algumas coisas que achava desnecessárias. Uma delas era a reunião com o síndico. Uma vez por mês o síndico organizava, geralmente em um domingo, uma reunião com um representante de cada casa para falar de algumas necessidades do prédio e como podíamos solucioná-las em conjunto. Para uma criança aquilo tudo era muito chato, mas hoje eu vejo sua importância. De uns meses para cá me peguei lembrando dessas reuniões e fiquei imaginando qual seria a reação da minha mãe se na primeira reunião do ano o “dono da favela” fosse em uma dessas reuniões entregar um presente ao síndico. Tipo uma homenagem, um quadro com a imagem do síndico coberta por várias cápsulas de projéteis de fuzil. Como reagiria minha mãe? Não sei bem se ela conseguiria falar algo, mas tenho total certeza de que ela não veria isso com bons olhos. Na verdade, acho que nenhum morador daquele prédio veria isso com bons olhos.
Me parece ser razoável dizer que, nessa situação fictícia, ninguém veria o síndico com bons olhos. Então, por que cargas d’água o atual governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, ao ir na nomeação do novo comandante do Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar (BOPE), recebeu do mesmo uma imagem sua coberta com vários projéteis de cápsulas de fuzil, e achou que essa ação seria algo positiva? Bom, talvez porque seja positiva para os interesses dele.
Muitas pessoas acabam associando Política apenas às ações que o político A ou B faz, mas é importante ser dito que política também é construída através de gestos simbólicos e criação de símbolos. Estamos revivendo uma enorme onda de ódio na nossa história, todos aqueles que surfam nessa onda têm um pouquinho de “ódio interior” para externalizar diante da população. Até porque foi muito desse “pequeno ódio”, semeado durante a última campanha eleitoral, que permitiu boa parte dessas pessoas se elegerem hoje. O que não faltam são exemplos, nacionais e internacionais, para comprovar isso. Witzel, nosso atual governador, navega nesses mares, e usa do seu capital político para criar os seus símbolos. É sobre esses símbolos que ele constrói seus inimigos (ou “narcoterroristas”), seus mocinhos (“cidadão de bem”) e o que ele diz ser o melhor caminho para a “paz” (“tiro na cabecinha”).
Essas pessoas, que criam seus vilões e mocinhos e que surfam nesse projeto de mundo, mostram a sua face a cada vez que negam a ciência para impor seu Estado permanente de violência. Cabe ressaltar que todos os estudos indicam que mais armas só poderá gerar mais violência, mas mesmo assim insistem na política do armamento. O emblema que essa nova direita opera, para criar o seu enredo, está diretamente ligado em negar a ciência e fatos históricos. É como se o segundo turno, o das fake news, não acabasse, nem mesmo já passadas as eleições, em uma espécie de looping sem fim. Não é à toa que, seguindo nessa linha, Bolsonaro faz um pedindo para os militares: “comemorem a revolução de 1964”. Aqui no Rio, o Witzel, nosso fiel escudeiro da corrente bolsonarista, alegou que “No Brasil nunca houve golpe. O que houve no Brasil foram ações do povo contra determinadas situações que, naquele momento, não eram de interesse do povo. Se não tivesse havido regime militar, teria havido um regime comunista. O povo optou pelo não-comunismo”.
Essa falta de caráter imprime a nova disputa que iremos travar de agora em diante: qual história será contada como verdade para as próximas gerações? A saída dada para essa sinuca de bico moral, ética e política já se mostrou muito clara na metade do segundo turno para cá: articulação nas ruas, na conversa face a face com o povão, disputando mentes e corações contra tudo isso que se impõem para nós. Essa saída, que vai de médio a longo prazo, será uma trilha árdua que, se não tomarmos como o principal horizonte, ficaremos presos nesse redemoinho que só se aprofundou de 2016 até agora.