A Favela dá Escritor?

Opinião

Esta semana a homenagem à escritora Carolina Maria de Jesus (1914-1977) na Academia Carioca de Letras reacendeu o debate sobre a escrita de moradores de favelas e sobre quem decide o que é literatura. Segundo o acadêmico Proença, Carolina, ex-moradora da favela do Canindé que descreveu o cotidiano da vida na favela em seu diário “Quarto de Despejo”, não teria produzido literatura. Para discutir isto trazemos o texto “A FAVELA DÁ ESCRITOR?” de Miriane Peregrino, coordenadora de roda de leitura na Maré, educadora popular e doutoranda em Ciência da Literatura pela UFRJ.

Por Miriane Peregrino

“22 de maio de 1960
_Ela é escritora da favela.
Ouvi uma gargalhada irônica:
_Favela não dá escritor. Dá ladrão, tarado e vadio. Homem que mora na favela não presta”

Neste trecho, Carolina descreveu a recepção de sua obra numa livraria onde escutou o diálogo de duas clientes sobre a publicação de “Quarto de Despejo”. Consta no seu segundo livro, “Casa de Alvenaria: diário de uma ex-favelada”, de 1961, e continua muito atual.
Quando saiu “Quarto de Despejo: diário de uma favelada” muita gente disse que Carolina de Jesus não tinha escrito o livro. Na cabeça deles era impossível que aquela mulher pobre, negra e favelada tivesse escrito um livro. Atribuíram a autoria ao jornalista Audálio Dantas, que conheceu Carolina, leu os manuscritos dela e viabilizou a publicação do livro através da Editora Francisco Alves. Segundo esses intelectuais, Audálio Dantas estaria fazendo chacota com a intelectualidade brasileira dizendo que aquele livro era de Carolina de Jesus. Aquilo era “marketing”, era pseudônimo, era invenção. Era tudo e qualquer coisa, menos a obra de uma mulher com o nível de escola formal de apenas 2 anos de ciclo básico.
Então, um ano depois, Carolina de Jesus publicou seu segundo livro: “Casa de Alvenaria: diário de uma ex-favelada”. Em 1963 saíram mais dois livros da escritora favelada – “Provérbios” e “Pedaços de Fome”. Os que se achavam “donos da literatura” tiveram que admitir que Carolina de Jesus era mesmo a autora das obras. E aí, iniciaram outra discussão: depois que Carolina saiu da favela, ela tinha perdido o jeito de escrever. Já que ela escrevia – não tinham mais como negar isto – por sua cor e classe social só poderia nos dar uma literatura “exótica” e longe do seu habitat não teria mais como ela produzir literatura. Determinismo cruel.

Passados 57 anos da publicação de “Quarto de Despejo” e da foto de Carolina diante das portas fechadas da Academia Paulista de Letras, avançamos muito pouco no reconhecimento da obra de Carolina de Jesus. Por mais fundamental que seja, Carolina de Jesus não se reduz a “Quarto de Despejo”. É preciso avançar na leitura de suas outras obras e nos seus cadernos inéditos depositados na Fundação Biblioteca Nacional. As obras dela precisam ser revisitadas, estudadas e discutidas dentro e fora da academia para confrontar os Proenças.

Ivan Cavalcanti Proença não foi o primeiro e nem será o último a desqualificar a escrita de Carolina de Jesus. Outros vieram antes dele e um outro nome da literatura conhecido – Wilson Martins. Quantos livros de Carolina de Jesus eles leram? De Carolina de Jesus também foram publicados Diário de Bitita (1982), Meu Estranho Diário (1996), Antologia Pessoal (1996) e Onde Estaes Felicidade (2014).

A desqualificação da escrita de Carolina não é novidade e não é sua exclusividade.

Os “donos da literatura” durante muito tempo disseram (e há os que ainda dizem) que escrita de mulher não é literatura. Quando o texto era considerado bom diziam que era uma escrita diferente ou mesmo atribuíam a autoria da obra ao homem mais próximo: pai, irmão, namorado, marido. A escrita tinha que ser “masculinizada”. Pablo Neruda em “Confesso que Vivi” faz elogio à chilena Gabriela Mistral, prêmio Nobel de Literatura em 1945, afirmando que ela era uma grande escritora porque tinha em sua escrita uma fúria masculina. Quando “O Quinze” da cearense Rachel de Queiroz saiu, Graciliano Ramos leu e afirmou que aquilo não poderia ter sido escrito por uma mulher, era uma piada.

Mas, no campo literário e fora dele, um abismo separa Carolina de Jesus dessas outras escritoras: sua cor, escolaridade e classe social.

Carlos Ávila, no livro “Poesia Pensada”, fala de algo que me incomoda profundamente: a incomunicabilidade da poesia, a incomunicabilidade da literatura. E reafirma que a literatura é uma arte para poucos e uma arte restrita a um grupo social muito específico.

Foi contra esta “incomunicabilidade” que comecei o projeto LITERATURA COMUNICA! propondo rodas de leitura sobre autores oriundos das classes populares, especialmente mulheres, e destacando Carolina Maria de Jesus. Mas não sou especialista em Carolina de Jesus, não estudo Carolina na academia. Ela não é meu objeto de tese de doutorado. Muita gente me questiona por que eu não pesquiso Carolina de Jesus no doutorado. Simples: para mim a academia é um meio, é uma frente de batalha mas minha trincheira não se reduz à academia. Ela é na favela, no campo, na sala de aula de um pré-vestibular comunitário, na sala de uma escola pública e mesmo na sala de aula de uma universidade. Onde, no embate cotidiano, encontro e reconheço os olhos e anseios de novas Carolinas.

A literatura nasce da palavra que nos inquieta a alma, que tira nosso sono, que exige sair.
Carolina dormia com caneta e papel debaixo do travesseiro.
Salve ela!
*
Para quem não acompanhou a discussão sobre Carolina de Jesus na Academia Carioca de Letras: https://www.facebook.com/elisalucinda/posts/1289284134489348

Sobre o projeto Literatura Comunica! ver a página: https://www.facebook.com/Literatura-Comunica-1573780362850305/

 

Roda de Leitura reúne moradores das favelas da Maré, Cerro Corá, Providência e Fallet. Na foto, visita à Biblioteca Carolina Maria de Jesus do Museu Afro Brasil, em São Paulo. 24.01.2016.
Foto: Pâmela Peregrino

Comentários