Camila Moura: A criança que sonhava em ser atriz e se tornou referência

Cultura, Notícias

Texto e foto de capa por Ana Cristina da Silva

Quando criança, Camila Moura sonhou em ser atriz. Gostava de fazer imitações de frente para o espelho e brincava com a imaginação. No entanto, sem acesso ao teatro, suas únicas referências eram novelas e atores que estavam bem distantes da sua realidade. O sonho parecia inalcançável. Afinal, a vida por si só já cobra muito, mas a vida na favela cobra o dobro. Camila cresceu, trabalhou com telemarketing e pensou em cursar enfermagem, sem saber que aquele sonho engavetado explodiria como uma supernova, destroçando barreiras e abrindo um novo caminho. Na infância a falta de representatividade quase matou seu sonho, mas aos 28 anos, após muito desbravar o teatro, recebeu o Prêmio CBTIJ na categoria de Atriz Coadjuvante e o dedicou a todas as crianças mareenses, provando que sonhar valia a pena.

Camila recebeu o Prêmio CBTIJ por sua atuação na peça “Quem é o Zézinho?”. Foto: Bianka Carrilho.
O início

Camila já carrega consigo oito anos de teatro, mas essa história só se desenvolve graças a um questionamento. Na adolescência, em uma conversa com um amigo, a mareense contou que sonhava em ser artista. Sem perceber o quão fácil é se esquecer dos sonhos em um mundo que desde cedo já te exige muito, o amigo estranhou a resposta e então perguntou: “Ué, sonhava? Não sonha mais?”. E foi assim que tudo começou. Algo despertou dentro de Camila e quando ela foi ver já estava buscando cursos e oficinas livres até que finalmente, aos 19 anos, ela ingressasse no teatro.

Apesar de ser cria da Baixa do Sapateiro, ela começou em uma escola de formação em artes cênicas fora do território, a Oficina de Atores, em Copacabana. Trabalhava para pagar o curso, mas apesar de ter ficado ali por dois anos, a experiência não foi das melhores. “Eu não me via nas dramaturgias, eu não me via nos meus colegas de turma, eram pessoas completamente diferentes de mim. Pessoas que desde o princípio da vida tiveram acesso a arte, eu não tive”, conta a mareense. No entanto, apesar desse início conturbado, ela sabia que era aquilo que queria para sua vida e, entre uma conexão e outra, acabou parando em um outro grupo teatral, desta vez em uma periferia: a Rocinha.

Apesar de ter se mudado este ano, Camila é cria da Baixa do Sapateiro e está com frequência pela Maré. Foto: Arquivo pessoal.

Quando eu comecei a frequentar a Rocinha e estar com pessoas faveladas, foi um divisor de águas. Foi quando eu comecei a enxergar aqueles corpos, me ver neles e também enxergar o meu território Maré. Eu pensei ‘Cara, eu estou com pessoas da favela fazendo arte. Como é que eu nunca vivi isso na Maré? O que tem na Maré que eu não vi ainda?’. Isso tudo sem me entender enquanto negra, enquanto periférica. Essa vivência na cia aguça essa curiosidade de estar na Maré e então eu começo a explorar esse lugar e tudo muda”.

Entre Lugares

Ao ver pessoas pretas e periféricas usando suas vivências para fazer arte na Rocinha, Camila resolveu buscar o mesmo na Maré. Já conhecia o Entre Lugares através das redes sociais, e apesar de na época o projeto não aceitar pessoas maiores de idade, com insistência, em 2019 ela começou a fazer parte daquilo que mudaria completamente sua visão de mundo. Seu primeiro espetáculo ali se chamava “Ela não se Lembra Mais: 33 planos contra o esquecimento”, que contava a história de Alice, uma mulher preta e periférica que trabalhava como empregada doméstica. Para a produção da peça, os alunos do projeto estudaram sobre a história do Brasil. “Foi a partir do fazer teatral aqui dentro, me reconhecendo no grupo e conhecendo a história do Brasil, a história real, aquela que até então era escondida da gente, que eu comecei a acreditar que era possível seguir esse rumo e ter aquilo como profissão”, conta Camila.

O espetáculo “Ela não se Lembra mais” estreou em 2019 no Museu da Maré. Foto: Thiago Santos.

Foi a partir do ‘Ela Não Se Lembra Mais’, junto do Pedro Emanuel e de toda a galera do Entre Lugares, tendo um núcleo de amizades do meu território, que eu comecei a me aceitar. Na época eu já estava em transição capilar, e aí foi onde eu comecei a me ver, comecei também a ter autoestima, não autoestima estética, mas autoestima de me sentir pertencente ao mundo, à sociedade”

Para além de proporcionar tantas novidades, o Entre Lugares também abriu muitas portas para Camila. Foi ali que ela se sentiu incentivada a tentar o Teste de Habilidade Específica (THE), da Escola Técnica Estadual de Teatro Martins Penna. Apesar de não ter conseguido de primeira, na sua segunda tentativa conseguiu ingressar em segundo lugar, tendo previsão para se formar no final deste ano. No entanto, dentre as coisas mais fantásticas do teatro, estão os laços que se formam no espaço. Se no seu primeiro grupo de teatro Camila se sentiu distante das pessoas, nos ensaios do Entre Lugares ela encontrou amigos que hoje são quase irmãos. Juntos eles formaram a Cia Cria do Beco que, com o seu pouco tempo de existência, já fez história dentro e fora da Maré com o sucesso teatral “Nem Todo Filho Vinga”.

Trabalhos mais recentes

Sem dúvida alguma o espetáculo “Ela Não se Lembra Mais”, seu primeiro trabalho no Entre Lugares, é de extrema importância. No entanto, dentro desses oito anos de teatro, Camila destaca outros dois importantes trabalhos em sua carreira. O primeiro é a peça-filme “Meu filho só anda um pouco mais lento”, dirigida por Rodrigo Portella. “Eu diria que esse trabalho me marcou muito pela experiência no audiovisual e porque era meu sonho trabalhar com ele (Portella)”. A obra que ficou em cartaz por 3 meses no Oi Futuro girava em torno da família de Branko que, devido a uma doença degenerativa, se tornou dependente da cadeira de rodas. “A minha personagem, a Doris, era a única que tinha uma energia leve. A família toda era muito triste. E os ensaios aconteceram no momento da pandemia (…) a Doris me exigia o que Camila tinha pra dar, mas que naquele momento a Camila não conseguia”.

A peça-filme “Meu filho só anda um pouco mais lento” teve exibição interativa no Oi Futuro. Foto: Reprodução.

Nem Todo Filho Vinga também entra na lista. Após a Cria do Beco ser o primeiro grupo favelado a ganhar o Festival de Teatro Universitário (FESTU), a esquete de 16 minutos se tornou uma peça. Em 2022 sua primeira temporada aconteceu no Museu da Maré e foi sucesso absoluto. Os ingressos eram distribuídos de forma gratuita pela plataforma Sympla e se esgotavam sempre em menos de 10 minutos após serem liberados. Com a repercussão, o grupo também concluiu uma temporada no Leblon. E, deixando sua marca no teatro preto e favelado, Nem Todo Filho Vinga também chegou ao 33º Prêmio Shell com duas indicações: Energia que vem da Gente e Melhor Direção por Renata Tavares, vencendo nesta última.

Uma vez que a gente se aprofunda e faz esse resgate da memória do nosso território, das nossas vivências, é como uma oportunidade de se refazer e se fortalecer (…) Na medida em que a gente vai fazendo esse trabalho que ganha essa proporção que ganhou, falando sobre as nossas histórias e ressaltando a nossa vida, porque somos todos jovens pretos e periféricos, é muito poderoso. A gente fez apresentações fora, mas o que a gente viveu aqui na Maré é inexplicável. É um sentimento que até hoje ecoa e me resgata”.

Cena do espetáculo “Nem Todo Filho Vinga”. Foto: José Bismarck.
A arte como ferramenta de transformação

Convidada para substituir uma atriz, no ano passado Camila estreou na peça infantil “Quem é o Zézinho?”, que realizou uma temporada de um mês no SESC Tijuca. “É um coletivo que já se conhece, a galera já estava em construção daquele processo há mais de um ano. Então eu cheguei meio que sem conhecer o coletivo e sem entender muito bem o que ia acontecer no espetáculo”, conta a atriz. Porém, apesar do desafio, foi por conta deste trabalho que Camila Moura acabou conquistando o prêmio CBTIJ de Teatro para Crianças na categoria de Atriz em Papel Coadjuvante. O mais interessante é que em uma das últimas apresentações da temporada inúmeras crianças da Maré estiveram presentes, sendo este um dos motivos que a fizeram dedicar seu prêmio para as crianças do território.

Quando acabou o espetáculo, uma professora me chamou. Tinha uma criança chorando, uma menina negra, com o cabelo bem parecido com o meu, só que preso. Aí a professora falou: ‘diz aí o que você estava falando pra mim’, e a menina com voz de choro falou: ‘é porque o seu cabelo é muito lindo’. Depois eu fui saber que todas aquelas crianças eram daqui da Maré. Aquilo pra mim foi surreal, porque eram crianças pretas, eram crianças daqui da favela que ficaram muito felizes com o espetáculo”

Na peça infantil “Quem é o Zézinho?”, Camila interpretou três personagens. Foto: Rodrigo Menezes.

Hoje, Camila não mora mais na Maré, mas o território nunca a deixou. Prestes a se formar na Martins Penna, ela vive exclusivamente da arte há 2 anos. Sua pesquisa gira em torno da história do Brasil e das favelas, na tentativa de se dedicar sempre a trabalhos que de forma subjetiva retratem a realidade que ela e tantos outros vivenciaram e ainda vivenciam. “Eu não quero ser simplesmente atriz, eu quero de alguma forma, através do meu ofício, poder transformar, plantar semente”.

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