Empreendedoras mareenses à frente da gastronomia

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Por Carolina Vaz

Foto de capa: Raysa Castro

Uma pesquisa realizada em 2023 pelo Instituto Data Favela revelou que, para 21% dos moradores de favelas cariocas, o maior sonho é ter o próprio negócio. E a maioria deles, 8 em cada 10, querem abrir este negócio na favela mesmo. A mesma pesquisa mostrou que quase um terço das mulheres faveladas do Brasil, 29%, têm o sonho de empreender. Os motivos desses números são fáceis de imaginar: o desejo de ter a própria fonte de renda, se manter perto dos filhos e demais parentes, não ter custos de aluguel. Pode parecer fácil, quando vemos tantas mulheres que têm seus salões, seus negócios de comida, unha, sobrancelha, mas na verdade cada uma tem sua história de luta. Nesta reportagem fomos atrás das histórias por trás de dois estabelecimentos de alimentação: o Bar da Amparo, em funcionamento há mais de 20 anos, e o Cheffonas Gastrobar, inovação na Vila do Pinheiro há cerca de 9 meses.

Duas décadas de Bar da Amparo

Quem vê Amparo, Avany e Silvaneide dando conta de anotar pedido, servir e cobrar no Bar da Amparo de segunda a sábado desde as 11h não imagina como foi difícil abrir aquele negócio. “Quando eu vim pra cá eu realmente não tinha o dinheiro nem do aluguel. O aluguel era 150 reais e realmente naquele exato momento eu não tinha, e ele me deu uns dias para trabalhar e eu consegui pagar”. É o que conta a dona do restaurante no Morro do Timbau, Maria do Amparo Bezerra, contando sobre o dono do espaço que acreditou nela para abrir seu negócio ali.

Aos 59 anos e natural de Bodocó, em Pernambuco, ela conta que sempre gostou de cozinhar, era quem comandava a cozinha em festas de família, e começou sua vida de empreendedora com um trailer alugado, na Rua Magalhães, no Morro. Depois entregou ao proprietário, começou a fazer marmitas em casa e só foi alugar o atual espaço, na Rua Luís Ferreira, há cerca de 20 anos. Aos poucos ela foi conquistando cada item necessário: mesa, cadeira, freezer, fogão industrial. No início foi preciso comprar quase tudo, mas na verdade esse processo não finaliza de verdade: sempre tem uma cadeira que quebra, uma geladeira que dá defeito com queda de luz, entre outros problemas.

Cada elemento da cozinha de Amparo é uma conquista. Foto: Raysa Castro.

Com o tempo, ela conseguiu expandir o restaurante. O espaço que é, hoje, a cozinha e o atendimento do caixa, antes tinha também o salão para clientes. Era pequeno. Somente mais tarde ela conseguiu alugar o espaço anexo, expandindo o salão como é hoje. Quando conseguiu comprar, decidiu reformar, e logo após a reforma, quando estava tudo pronto para receber dezenas de clientes de uma só vez, veio a pandemia. Cheia de dívidas, Amparo se desesperou, mas logo os amigos ajudaram a montar uma gama de clientes para quem ela poderia mandar as refeições via delivery. Por incrível que pareça, o problema depois se tornou uma vantagem, pois ela reabriu com um restaurante arejado e mais propício às normas sanitárias.

Apesar de o Bar da Amparo só abrir por volta das 11h, para que tudo esteja pronto o trabalho precisa começar bem mais cedo: a Amparo chega às 5h30. Além das refeições, que são de 30 a 50 servidas diariamente, elas também pegam encomendas de coffe break, que demandam a produção de bolo, suco natural, brownie, pão de metro… para isso nem sempre é suficiente chegar cedo, se for na segunda-feira ela adianta compras e preparos no domingo, mesmo que precise da ajuda de alguém da família.

Onde hoje é só a parte da cozinha e bebidas no passado já foi o restaurante todo. Foto: Raysa Castro.

Em todo esse percurso, em vários momentos ela foi criticada: “Sempre tem um que fala ‘ai você inventa, nossa…’ Aí quando eu inventava mais uma coisa falava ‘ah está arrumando mais trabalho’. Eu falava que é assim mesmo, vou conseguir. Sempre tive provações”. Há mais de 20 anos tocando o próprio negócio, ela motiva outras mulheres a abrirem também, mesmo que comecem pequeno:

“A pessoa tem que acreditar. Ter força, porque é muito difícil. Não vou dizer que é fácil porque não é fácil, porque tem horas que parece que você não vai conseguir, mas tem que acreditar”.

Maria do Amparo Bezerra

Um gastrobar no meio da Vila do Pinheiro

A pouco mais de 1km do Bar da Amparo, que na verdade é um restaurante, outro bar , no caso um gastrobar, começa a formar sua clientela: o Cheffonas Gastrobar, no “coração” da Vila do Pinheiro, criado pelo casal Joice Nogueira e Rafaelle Ribeiro. Elas inauguraram o gastrobar em junho de 2023, e aos poucos vêm conquistando clientes dali e de outras favelas no número 91 da Via C4.

As duas mareenses, Joice criada na Baixa do Sapateiro, e Rafaelle criada no Parque União, se conheceram trabalhando juntas em cozinhas de outros bares e cervejarias. No bairro de Botafogo, trabalharam juntas em dois estabelecimentos, contando 7 anos de parceria, onde se desenvolveram em áreas como cerveja artesanal e também petiscos e sanduíches com ingredientes artesanais, receitas criadas no local. “A gente viu que a gente se dá bem não só como parceiras de vida, porque somos um casal, mas no trabalho também a gente se identificou bastante”, conta Joice.

Após 5 anos de namoro, Joice e Rafaelle descobriram que também se dão bem nos negócios. Foto: Raysa Castro.

Juntas há 5 anos, tendo acumulado todo o conhecimento de chefs fora da Maré, elas decidiram montar o próprio negócio. A Rafaelle, na verdade, já tinha um negócio de doces, então já tinha noção do gerenciamento no sentido de compra, produção e venda. O local escolhido foi o térreo de um prédio construído pelo avô de Joice, seu Geraldo, onde vive sua família. Aquele espaço, por muitos anos, foi a oficina de bicicleta do seu Geraldo, e depois que ele faleceu se tornou um bar. Mas este era um bar “para homens”, como define Joice, com os produtos mais tradicionais de um bar dentro da favela. Depois que saiu o último locatário, elas alugaram e começaram a criação do gastrobar da Vila.

“Sempre fez parte do nosso desejo que fosse na Maré, pela nossa identidade e porque a gente acredita na democratização desse alimento dito ‘gastronômico’. Por isso que a nossa marca é Cheffonas Gastrobar, porque a gente quer ser vista como um bar mas com uma pegada diferente na comida”.

Joice Nogueira, idealizadora do Cheffonas Gastrobar

O que é essa pegada diferente? É fazer um hamburguer, confeccionado por elas mesmas e não industrializado, utilizar um queijo sem corante, ofertar pães diferentes do tradicional, assim como linguiça artesanal e nuggets 100% frango. Fazer tudo isso na favela, onde são menores os custos relativos a água, luz e aluguel, faz com que elas possam vender, na C4, o mesmo hambúrguer que faziam em Botafogo, porém pela metade do preço.

Elas buscam utilizar produtos artesanais para os sanduíches e petiscos. Foto: Raysa Castro.

Quanto à identidade, elas sempre deixaram explícito que o Cheffonas é um bar feminista e LGBT, tendo como premissa que a mulher se sinta bem ali, livre de importunação. Esteja ela com sua companheira, seu companheiro, filhos, amigos, ou sozinha. Essa identidade, no entanto, não é para limitar público, pois o objetivo delas é abranger. Nem todos os vizinhos aceitaram bem a mudança de um bar tradicional para um “gastrobar”, mas outros elogiam, dizendo que elas levaram cores, música ao vivo, que antes não tinha.

Talvez porque já visualizavam que nem todo mundo entenderia, para Joice o maior desafio de abrir foi criar o negócio: identificar o que queriam oferecer, para qual público e qual é o perfil da vizinhança. Rafaelle aponta também a dificuldade de ofertar produtos diferentes, como cervejas fora das tradicionais, tendo que lidar com fornecedores que ainda não conhecem o negócio e nem entram na favela. Não é como se a C4 fosse a Principal da Vila do João. “A gente está num lugar que não é tão estratégico tentando investir em cerveja artesanal, trazer o lado cervejeiro que a gente aprendeu lá fora, e a gente sabe que tem uma galera que é cervejeira aqui mas às vezes não encontra uma cerveja melhor pra tomar”, ela comenta.

As duas conciliam o preparo dos pedidos com o gerenciamento do gastrobar. Foto: Raysa Castro.

Muitos são os desafios, diários, mas elas também não acreditam que eles sejam suficientes para que as mulheres desistam de empreender. É o recado que Joice deixa a mulheres que têm esse desejo: “Eu acho que vem da coragem mesmo. É claro que os meios financeiros são limitadores, mas eu acho que é coragem, porque a gente vê tantas mulheres que começam a ter independência financeira, fazer a aquisição do próprio espacinho… você monta uma salinha na sua casa e começa a fazer seu dinheiro fazendo unha, vendendo sanduíche… isso te edifica, te reconstrói”.

Conheça mais dos estabelecimentos:

Bar da Amparo

Rua Luis Ferreira, 55, Morro do Timbau

Instagram: @baramparo

Cheffonas Gastrobar:

Via C4, nº 91, Vila do Pinheiro

Instagram: @cheffonasgastrobar

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